sábado, 27 de fevereiro de 2010

A história de um blogue que se sitiou




Novo endereço: http://aeiou.visao.pt/finalcut

Um site ainda em construção

Para verem este micro-mini-pequeno-trailer, um exclusivo Fina Cut, abram bem os olhos - e os ouvidos...

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O Gosto de Gonçalo Fonseca

Top Ten 2009





1 - Inglorious Basterds


Sou apologista que os filmes que dão que pensar, que transmitem uma mensagem, são os que dão mais prazer em ir ver. Não é o caso do Inglorious Basterds. Não tem nenhuma mensagem específica, a não ser a típica “What if” e já vista noutros filmes. Neste caso é o maior “What if” da história do cinema (e dos mais credíveis) e só poderia ter sido levado a cabo por um realizador com um talento como o do Tarantino. Inglorious Basterds é puro entretenimento, e nessa perspectiva dá que pensar. Não é também para isso que o cinema existe? O cinema também existe para que durante 2 horas o espectador tenha um escape, se entretenha, se divirta, e veja um filme de qualidade. O argumento é dos mais originais, divertidos e bem escritos do ano, o casting e direcção de actores é sem dúvida o melhor do ano, a realização impecável, a fotografia excelente e a banda sonora do melhor que o Tarantino nos trouxe até agora. A última deixa do filme pode parecer prepotente, mas se pensarmos bem na performance do filme talvez até não seja. Diga o que se disser, o objectivo maior de um artista é comunicar e ter reconhecimento crítico. Nesse aspecto este filme teve uma performance como poucos filmes na história do cinema. Liderou as bilheteiras mundiais durante o período que esteve em cena e teve das melhores críticas do ano. São feitos raros, lembro-me assim de repente de 3: Dark night, Titanic e Senhor dos Anéis. Nesse aspecto “esta poderá ser a obra-prima de Tarantino”. Os filmes de guerra nunca mais serão os mesmos depois deste IB. Não está ao nível de Pulp Fiction apenas e só porque não vai revolucionar o cinema (como o Pulp Fiction o fez). Para mim, é o melhor filme de 2009.


2 - Avatar


O que na minha opinião é o segundo melhor filme do ano, é exactamente o oposto do anterior. Este é o filme-mensagem do ano. De uma forma simples e acessível passa-nos a grande mensagem que todos precisamos de ouvir. Precisamos cada vez mais de respeito. Respeito pelos outros seres vivos, respeito pelas outras crenças, respeito pelo local onde vivemos, respeito por nós próprios. Pode parecer uma história simples com personagens tipificadas, o que até é verdade, mas é importante que assim seja, se se quer assumir como um filme que passa uma mensagem para o mundo inteiro (o Avatar ajudou finalmente a “verdade inconveniente” do Al Gore a chegar ao mundo inteiro em massa). Para que seja universal é necessário que seja simples. E realmente a história e as personagens são mesmo a única coisa que é simples neste filme. Tudo o resto é do mais inovador que se tem visto até hoje. Mesmo que não se veja o filme em 3D, é absolutamente único, com um mundo criado de raiz que é simplesmente fascinante. A personagem feminina é excelente, é a alma do filme e personifica a ligação com a natureza de uma forma genial. Dá sentido a todo o filme, pois essa força, essa ligação com a natureza, é essencial para que tudo o que se passa no filme seja credível e coerente. O Avatar dá-nos que pensar a vários níveis e faz analogias com inúmeras situações actuais e passadas na história da humanidade. Tudo o que acontece no filme não acontece por acaso. O vilão entra directamente para a galeria dos melhores da história do cinema e é… humano J Aliás, nós, enquanto espécie humana, somos os vilões o que também é uma inovação. Se pudesse resumir todas as mensagens e sub-mensagens que este filme nos revela, escolhia uma cena do filme em que o avatar do jake está a pedir ajuda à tree of souls (elemento central, espiritual, e de equilíbrio de toda a civilzação Na’vi) e diz: “Por favor Mãe, ajuda-nos a combater os humanos. Eles destruíram a Mãe deles há muito tempo. E agora vêm para destruir a nossa”. Quem quiser ver a mensagem, vê. É clara. Basta ver as notícias. Basta ver a desflorestação galopante da amazónia e de sociedades de índios que lá vivem. Basta ver a incoerência da Guerra quando nos ensinam que matar é o pior crime que alguém pode cometer e depois nos mandam para matar os nossos semelhantes. Basta ver os testes nucleares no pacifico. Basta ver o aquecimento global a destruir o planeta. Basta ver isto. E nós, sociedades civis, vemos. Mas depois há sempre alguém com mais força que continua. Enquanto nós todos que nos preocupamos não fizermos nada contra, continuaremos apenas a ver. Obrigado Avatar pelo wake up call. Espero que tenha os seus resultados.



3 - Hurt Locker


Uma das minhas cenas preferidas de todos os filmes que já vi, é do filme Jarhead do Sam Mendes e nunca mais me esquecerei dessa cena maravilhosa. Para quem não viu o filme, passa-se na guerra do Kuwait, e a determinada altura o Jamie Fox e o Jake Gyllenhaal estão num cenário devastador. Estão numa cratera no meio de milhares poços de petróleo que foram queimados pelos iraquianos à medida que os americanos avançavam no terreno. Estes poços ao serem queimados deitavam fumo preto que cobriam totalmente os céus, ficando um cenário totalmente infernal. No meio deste “inferno” o Jamie e o Jake estão os dois sentados numa cratera a ver todo este cenário e o Jamie diz: “Agradeço a Deus, todos os momentos que passo aqui na Guerra. Amo esta profissão do fundo do meu coração e não sei o que faria sem ela…. Urra”. Numa única cena, com um diálogo tão simples, mostra-se como o mundo seria melhor se todos fossemos como o Jamie. Com um auto-conhecimento completo que lhe permite saber quem é, o que quer, e para onde vai, sente-se totalmente realizado e feliz. Independentemente de como a Guerra e o inferno é interpretado pela maioria das pessoas, para ele é sinónimo de realização, e isso é que interessa. O Hurt Loker faz um filme inteiro que acenta neste conceito. Enquanto que o Jarhead tem inúmeros problemas técnicos, de construção da história e até das personagens, o Hurt Loker não tem absolutamente nenhum problema enquanto filme. Tudo é feito na perfeição. Tudo o que aparece no filme é perfeito. O casting, a história, as personagens, a fotografia, a montagem, a realização, a banda sonora. Está tudo no lugar, para assim poder passar esta mensagem de que se te conheceres a ti próprio estás sempre no sítio certo, na altura certa para fazer o que é preciso. Passa outra mensagem muito importante e que mais uma vez tem alguma ligação com a mensagem que o Avatar tenta passar. O Avatar mostra o que os humanos gostariam ou deveriam ser, e retrata-nos como seres pouco evoluídos com o único objectivo de sobreviver e prosperar à custa de tudo e todos à nossa volta. Quando o general está a atacar e destruir a árvore da vida dos N’avi, há qualquer coisa no olhar dele que vai para além do objectivo de sobreviver e prosperar à custa de tudo e de todos. Há um genuíno prazer na destruição. E essa é a outra das mensagens que Hurt Loker passa tão bem. Explica o dirty little secret da guerra. Explica o prazer que os homens têm em fazer guerra com a desculpa que esta é inevitável. Este prazer é considerado polémico porque supostamente ele não deveria existir porque supostamente as guerras não deveriam existir,mas o facto é que ele existe desde que somos miúdos e queremos estar a disparar armas nos jogos de computador. O que é verdade é que ele existe e está aí o Hurt Loker para nos relembrar disso. Um grande filme sobre o tema “Guerra”. Explica a guerra melhor do que muitos filmes de referência já realizados no passado (interessante ser realizado por uma mulher).




4 - Up in the air


Está repleto de mensagens que são transmitidas de uma forma divertida e inteligente. Constroi-se como uma comédia romântica, para depois poder destruir totalmente esse conceito de uma forma desconcertante e eficaz. È importante que assim seja para que a mensagem principal seja passada. Mais do que o filme pessimista do ano (embora com imensos momentos cheios de piada), é uma wake up call para todos nós. Uma wake up call diferente do Avatar, mas ambos se complementam com 2 mensagens fundamentais para vivermos melhor no futuro (e, como espécie humana, nunca precisámos tanto destas indicações como agora). O bottom line do filme é: todos nós, cada vez vivemos mais “up in the air”. E sabem porquê? Porque cada vez que “descemos à terra”, só encontramos desilusões. E quando isso acontece preferimos voltar “lá para cima”. Cada vez vivemos mais desligados das nossas relações, mais egoístas, com menos disponibilidade para partilhar. E todos nós somos responsáveis por isso. Embora ela seja a “vilã” do filme, foi uma personagem construída para nos mostrar como a nossa evolução e como os nossos princípios actuais (ou falta deles) contribuem para que as ligações pessoais sejam cada vez mais desvalorizadas. Mas nesse contexto, nem se poderá julgá-la, mas poderemos perceber onde estamos e para onde vamos. É excelente a forma como o filme cria o homem-objecto nas mãos de uma mulher (que me lembre é o primeiro filme que faz isto de uma forma totalmente credível e descomprometida). Tem dos melhores diálogos do ano, com especial ênfase para o diálogo entre o Clooney e o noivo da irmã que de repente ficou com second thoughts antes da cerimónia do casamento. Os 3 actores principais estão todos no topo de forma, com representações brilhantes. É um dos filmes-mensagem do ano e transmite, de uma forma não forçada, uma mensagem bem importante nos tempos que correm. Por isso e pela realização e interpretações brilhantes merece estar no topo desta lista.




5 - Up


A Pixar está com a fasquia altíssima. Mais alta do que alguma vez esteve. Fizeram uma revolução no cinema com o Toy Story e desde aí têm vindo sempre a crescer de filme para filme. Sempre a inovar. E nos 2 últimos filmes conseguiram uma coisa que mais nenhum outro filme de animação alguma vez conseguiu na história do cinema. Colocaram os seus filmes entre os melhores filmes do ano a par com todas as outras longa metragens “não animadas”. O Wall-E já fez parte da lista dos melhores filmes do ano passado. Mas com o Up conseguiram fazer ainda melhor. Sem deixar de ser um filme de aventuras e que os mais pequenos irão adorar, conseguem criar personagens inesquecíveis e conseguem criar 25 minutos do melhor que já se viu na história do cinema. Só por causa desses 25 minutos (15 no inicio do filme + 10 no final), já fazia sentido este filme estar entre os 10 melhores filmes do ano. Como a Empire disse, se o filme mantivesse o nível dos primeiros 15 minutos, seria o melhor filme da década. É verdade. Como não mantém, é apenas um dos melhores filmes do ano. Na minha opinião, o 5º melhor. Aprendemos a viver com Up, e ao vê-lo apercebemo-nos que na realidade nem sempre o fazemos como deve de ser. Ensina-nos a lidar com desilusões, com sonhos desfeitos (quando estes nos são vendidos ao segundo na nossa sociedade actual). A forma como ultrapassar estes momentos tristes da vida é tão simples… tão simples. E estas personagens mostram-no melhor do que ninguém. Ultrapassa-se com amor, com muito amor e humildade. Não me lembro de ter visto o amor tão bem representado num filme há muito tempo. Aliás, é possível q seja das melhores representações do amor que já vi no cinema. E por isso, o Up é um filme muito especial. A grande revelação deste ano. Aprendam com ele.




6 - Watcmen


Estreou no inicio do ano sem nenhumas pretensões (afastado de todos os festivais de referência) e assim continuou sem grandes intervenções nas melhores entregas de prémios de cinema mundiais. Para mim, é 6º melhor filme do ano. Visualmente estrondoso, e altamente filosófico, é muito violento e rodeado de personagens negras, complexas e altamente carismáticas. Elabora um interessantíssimo exercício filosófico sobre a nossa sociedade que tem na personagem do comediant o seu expoente máximo. O comediant antes de ser assassinado ri-se e diz: “This is all a fucking joke”. Depois de vermos o filme e descobrirmos a “trama” bem ao estilo de filme noir, percebemos o que ele quer dizer e não podemos deixar de sentir uma enorme empatia por esta personagem. Rorschac, é a par de Comediant, a personagem mais inesquecível do filme. É genial como a linha condutora do filme se vai desenvolvendo através de Rorschac e da sua investigação ao estilo de Filme Noir (um género sempre bem vindo e adorado para quem gosta de cinema). Será que precisamos mesmo de catástrofes para nos unirmos? It’s a milion dollar question que o filme deixa no ar, e que dá muito que pensar sobre os mais variados acontecimentos dramáticos que já passámos na nossa História. Tem a melhor “line” do ano: a determinada altura do filme, o Rorschac é preso e encarcerado numa prisão onde se encontram inúmeros prisioneiros que tinham sido colocados lá por ele. 70% da prisão quer vê-lo morto e a sofrer. Numa cena genial no refeitório da prisão, Rorschac está na fila com um prisioneiro atrás dele que lhe diz que ele vai morrer naquele mesmo dia. O Rorschac pega no óleo a ferver das batatas e despeja sobre o corpo do prisioneiro que o estava a ameaçar, ficando este automaticamente desfigurado numa cena de violência extrema. O Rorschac vira-se para os outros prisioneiros e diz: “Vocês ainda não perceberam. Não sou eu que estou aqui preso com vocês. SÃO VOCÊS Q ESTÃO AQUI PRESOS COMIGO!!!! J J… Muito bom! Tem dos melhores genéricos que já vi e é de um realizador em ascensão que até agora só fez filmes brilhantes. Zack Snider. Um nome a seguir com atenção.




7 – Let the right one in


Num ano em que os bons filmes de terror foram poucos, aparece um dos melhores dos últimos anos. Aparece nesta lista pois é muito mais do que um filme de terror. É uma excelente história com fabulosas interpretações. É uma história de personagens assombradas, é uma história assombrada que arrepia. É uma história daquelas que se contam ao redor de uma lareira e que todos nós gostamos de ouvir (incluindo as crianças). Nesse contexto é das melhores histórias do ano (a par talvez de Moon). E fala-nos de vampiros a sério. Para quem acha que estão a destruir a imagem dos vampiros, como eu acho, é refrescante continuar a ver vampiros assim. Os vampiros podem ser sedutores, e toda a tradição assim o sugere, mas não podem ser tratados como personagens de um conto de fadas ou de uma série para teens. Os vampiros são como neste filme, são como nos vampiros do Carpenter e do Copolla, são como no 30 days of night. Assim vale a pena ver filmes sobre vampiros. De resto, e mesmo para quem não gosta especialmente de filmes de terror, vale a pena ir ver este. Os dois actores principais, que são duas crianças, estão fabulosos, e tudo no filme é bem feito desde a banda sonora, à montagem, à fotografia, etc. Um dos filmes do ano.




8 – Moon


Todos os filmes contam uma história. Mas existem aqueles que contam uma história para entreter, outros para passar uma mensagem, outros para afirmar manifestos políticos, sociais ou até filosóficos. E depois existem outros que simplesmente querem contar uma boa história. Como disse em cima com o Let the right one in, daquelas que todos nós gostamos de ouvir em reunião com os amigos, numa noite de verão na praia a olhar para o céu estrelado J O Moon é assim, e na minha opinião é a melhor história do ano. Para além disso, bebe dos melhores filmes de sempre de ficção cientifica (2001, Alien, Espaço 1999 e Star Wars). A realização, montagem e fotografia são exemplares. E depois existe o Sam Rockwell. Não dá para perceber como é que ele não está nomeado para melhor actor do ano para os Óscares. Não só merecia estar nomeado, como provavelmente merecia ganhar. É simplesmente fenomenal. Aguenta um filme inteiro sozinho e nós nem damos pelo tempo passar. Depois de ver este filme não nos conseguimos esquecer da história. É daquelas que fica connosco. E claro que dá que pensar. É o Truman Show e o Big Brother do espaço. O realizador é o filho do David Bowie (Duncan Jones) e é o primeiro filme dele. Obrigatório ter atenção aos próximos trabalhos dele.




9 – Fantastic Mr. Fox


A melhor comédia do ano. Cada vez respeito mais o George Clooney pelas suas escolhas. O Wes Anderson já tinha coisas boas, mas com este filme superou-se e trouxe-nos um filme com um sentido de humor ao melhor nível. Já não me ria assim há muito tempo. São raras as vezes que me rio assim tanto num filme (talvez com os Monthy Python). A opção do stop motion foi acertada pois traz ainda mais piada à cara e aos movimentos dos bonecos. É uma comédia física e intelectual ao mais alto nível. Só não é o melhor filme de animação porque existe uma coisa chamada Up no caminho.


10 - Laço Branco


Os meus géneros preferidos no cinema são comédias e filmes de terror/violência (por isso gosto tanto do Tarantino pois mistura os dois estilos em todos os filmes que faz sem excepção – algumas das entrevistas do Tarantino têm potencial de stand up comedy). Tudo o que coloque filosofia na equação só melhora ainda mais o resultado (o que acontece a maioria das vezes com bons realizadores, pois quase todos eles têm esse background). Sendo assim, só posso apreciar banstante tudo o que Hanneke nos trouxe até agora (e obviamente não estou a falar de comédias). Haneke voltou em grande forma com o Laço Branco, continuando com as suas teses sobre a violência moderna, mas desta vez aprofundou ainda mais e tentou ir ao cerne da questão. Funny Games, com uma história bem simples, já conseguia colocar bem presentes todas as questões essenciais sobre a violência moderna. A História da violência e Eastern Promisses de David Cronenberg também são clássicas teses sobre esta questão mostrando bem como as sociedades civilizadas estão “presas” e incapazes de reagir a uma situação de confrontação e conflito. Na minha opinião, os exercícios de Haneke e Cronnenberg são muito importantes para nós nos conhecermos melhor (como espécie humana). Como está comprovado, o auto conhecimento só traz benefícios, e estes dois senhores contribuem e muito para o autoconhecimento da humanidade. A violência sempre existiu no ser humano, não é uma característica actual, é inerente ao mesmo. Com a chegada da religião e das leis das sociedades democráticas e civilizadas, ela simplesmente ficou “presa” e “amarrada”. Anda aí como sempre andou, mas “domada” por todos estes “novos” mecanismos que a própria sociedade criou (no caso da religião, há quem diga que não foi criada pela sociedade) para lidar com esta mesma violência. Por andar “presa” e contida, por vezes “explode” como aconteceu em Columbine. Haneke com o Laço Branco, consegue nos demonstrar este processo claro como a água, e por essa razão é considerado um ensaio de referência sobre a violência moderna nas sociedades civilizadas. Excelente em todos os aspectos, desde a realização, à fotografia, aos extraordinários desempenhos. Um dos filmes do ano. Ah… e by the way… ganhou a palma de ouro ao Inglorious Basterds… o que é automaticamente um ponto a favor.





Menções (fora do Top10):

11 – Where the wilds things are -> “O FILME” definitivo sobre a infância da nossa geração (final anos 70 / década 80). Na altura em que tínhamos que inventar mundos e histórias para nos entretar. Hoje em dia, basta ligar a consola para viajarmos para esses mundos com um toque do comando.

12 – Serious Man -> O regresso às origens dos Irmãos Coen, mas com ainda mais qualidade. Ao nível do melhor deles (Fargo, No Country, Burn), mas diferente J Sempre a inovar.

13 – Funny People –> E porque os comediantes são as minhas pessoas preferidas da nossa sociedade, não poderia deixar de colocar este filme nos melhores do ano. Consegue, a par do filme “Comedian” do Jerry Seinfeld mostrar-nos este mundo e consegue nos explicar como é a vida destas pessoas. Os comediantes são pessoas assombradas, pois são normalmente pessoas inteligentes e muito sensíveis a tudo o que as rodeia. Por isso mesmo, conseguem captar o ridículo que é a nossa vida quotidiana em sociedade. Não deixam de se rir por isso (pois qualquer bom comediante só lhe interessa uma coisa acima de tudo: rir de uma boa piada ou de uma situação cómica seja ela qual for), mas também sofrem por essa mesma razão pois apercebem-se melhor do que muitas pessoas a incoerência que a nossa sociedade representa hoje em dia. O Adam Sandler merecia mais reconhecimento pelo seu papel. Já vem demonstrando que é um bom actor e neste filme está ao melhor nível.

14 – Drag me to hell -> Acho que fui o único que gostou deste filme. Mas estou tão contente por ter o Sam Raimi de volta e em tão boa forma, que não posso deixar de o colocar aqui. Quem gosta de terror e comédia, está nas nuvens com Sam Raimi.


15 – Whatever Works -> Não sei se este filme é de 2009 ou 2010, mas só sei que o Woody Allen também voltou à sua excelente forma (sim, aquela antiga que já não víamos á muito tempo) e isso é sempre um motivo de felicidade J. O Match Point foi genial, mas este filme é o regresso aos filmes iniciais de Allen. E quem é fã de Allen como eu, deveria estar cheio de saudades.



*Gonçalo Fonseca é gestor de marca

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Fantástico cinema fantástico

Encontro imediático com Mário Dorminsky, director do Fantasporto

O Fantasporto comemora 30 anos de exiistência. O JL falou com o seu lendário director, Mário Dorminsky, sobre este Festival de Cinema Fantástico que se transformou num Fantástico Festival de Cinema

Qual foi a edição mais difícil de organizar? A primeira ou a trigésima?
Seguramente que esta última, ou melhor, as edições mais recentes do Fantasporto. Trinta anos volvidos da criação de um novo projecto cultural, organizado por um grupo restrito de amigos cineclubistas que – considerando ser o género «fantástico» não um reportório de filmes nos quais o terror e o sangue impera, mas sim o imaginário e a ficção – não admitiu de início, que o evento pudesse ser o que ele hoje é: o mais prestigiado e respeitado internacionalmente dos certames cinematográficos realizados em Portugal.
Passado este tempo e, apesar das comendas, medalhas e prémios que recebemos em Portugal, sinto que o Fantas continua a ser, talvez por se realizar no Norte e não ser conhecido ‘in loco’ por muitos dos que estão envolvidos no meio cultural sobretudo de Lisboa, um evento que não tem o respeito devido. Se, nos primeiros tempos do Fantas, tudo era fácil, gerir agora um programa cujo orçamento ronda os 3 a 4 milhões de euros (a maioria em serviços) é assustador, em particular em tempos de crise como os que vivemos desde 2001.

Quando o Fantas começou era um entre pouquíssimos festivais portugueses. Agora há quase um contínuo de festivais em Portugal ao longo do ano, alguns deles com crescente renome internacional. É uma competição saudável?
Há de facto actualmente em Portugal eventos de cinema. Festivais há muito poucos. Mas não há «competições» entre eles. Cada projecto é distinto. O que é necessário para ser objectivo será conhecer cada um desses eventos para ver e sentir as diferenças que existem entre eles.

Há muito que o Fantas abriu as suas portas a vários géneros cinematográficos, apostando também em ante-estreias de grandes filmes. É preferível ter um fantástico festival do que um festival de cinema fantástico?
Gostamos de cinema e não exclusivamente de cinema fantástico. Desde há 20 anos que abrimos as portas ao cinema em geral, em particular aos novos realizadores que, devido à qualidade evidenciada nos seus filmes, mereciam a nossa atenção. Desde o arranque do Fantas que exibimos os primeiros filmes de autores como David Cronenberg, David Lynch, Ridley Scott, Guilhermo del Toro, Peter Jackson, Luc Besson, os irmãos Cohen, Tarantino enfim, a lista é interminável e pode ser consultada no nosso site. Interessante é que, excepto Ridley Scott, Peter Jackson e Tarantino, todos os outros vieram ao Fantas. Apresentaram as suas primeiras obras mas...ainda não tinham conquistado o prestígio que hoje têm não tendo o destaque merecido. Há mais de 20 anos que trazemos para a Europa o cinema vindo da Ásia, em particular o japonês e coreano. O Fantas foi a «porta de entrada» para o mercado europeu dessas cinematografias e dos seus realizadores...e para responder à sua questão, obviamente queremos organizar anualmente um sempre renovado e jovem, «fantástico festival de cinema.»

Qual é o grande realizador que gostaria de ver no Porto, mas que ao logo destas três décadas ainda não foi possível?
Tim Burton...só cá tivemos o Danny Elfman que lhe faz as bandas sonoras para os seus filmes.

Este ano o cinema português está mais representado. Acha que isso se deve a um acréscimo de qualidade da produção nacional?
Não está mais do que nos anos anteriores. Destacamos e homenageamos anualmente um realizador ou produtor, este ano será o Luís Galvão Telles. Longas e curtas inéditas, se seleccionadas, têm entrado por diversas vezes em competição (tal como acontece este ano) tendo até já conquistado diversos prémios. Mas é nas curtas-metragens que mais apostamos, até porque o Fantas é uma grande montra mediática para os seus criadores. Temos parcerias com diversas escolas de cinema portuguesas que apresentam programas onde incluem os melhores trabalhos de fim de curso, com a agencia da curta metragem, com a casa da animação, com o Cineclube de Avanca e até com festivais como o black and white e o frame. Mas respondendo à sua pergunta há claramente uma maior qualidade no cinema feito em Portugal desde a utilização do digital. Não é assim por simpatia que exibimos anualmente mais de uma centena de filmes ‘made in Portugal’.

Luís Galvão Teles é o homenageado. Quais as razões da sua escolha?
Empreendedorismo. Alguém que gosta de arriscar e que, tal como outros, marcou o cinema português contemporâneo.

A programação é vastíssima, até perder de vista, com vários ciclos, homenagens e competições. Por isso peço-lhe que destaque meia dúzia de obras que considere imprescindíveis?
Claramente as três secções oficiais. De outra forma os filmes não teriam sido seleccionados de entre os mais de mil que vimos, mas para mim será o fantástico ciclo de cinema francês. É a história do cinema contada em imagens através de filmes imperdíveis dos maiores realizadores mundiais, sobretudo para as gerações mais novas os poderem ver no grande ecrã.

Sente-se com força para mais 30 anos de Fantas?
Sim...se nos permitirem trabalhar mais a parte artística do que termos de estar absorvidos na gigante burocracia que é organizar um festival hoje em dia. Talvez...porque, «contra tudo e todos», o Fantas tem de continuar a existir comigo ou não...

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O Gosto de Tiago R. Santos

“Ladies and gentleman, I traveled over half our state to be here tonight…”






A primeira vez que vi ‘There Will Be Blood’ foi em Nova Iorque. Não era uma sessão de cinema convencional. A sala estava cheia e as pessoas alegres, mesmo se o filme ainda estava longe de começar. Havia aquele entusiasmo que se reserva apenas para as ocasiões especiais.

(Anos antes, também em Nova Iorque, vi o Punch Drunk Love. À saída, uma senhora com cerca de sessenta anos esperava que a sessão acabasse, ansiosa por entrar na sala e que as bobines começassem de novo a rolar. Olhou para mim, sabendo que eu tinha acabado de ver a bizarra e espantosa comédia romântica do Paul Thomas Anderson, e perguntou: ‘Is it wonderful?’. Eu disse ‘Yes. Yes, it is’. E ela abraçou-me, contente por antecipação).

Porque esta não era apenas mais uma projecção de mais um filme. Quando terminasse, Paul Thomas Anderson, Daniel Day Lewis e Kevin J. O’Connor iriam subir ao palco e conversar com o público. Era isso que as pessoas antecipavam, esse momento e, se fizesse o exercício inútil de tentar ler as intenções de todos os que estavam presentes, o meu palpite seria que, para a maioria, o filme era apenas uma introdução ao evento principal da noite.

Até que as luzes se apagaram. E um raio de luz e imagem se transforma numa paisagem árida e os acordes do Jonny Greenwood ecoam na sala. Se alguma vez vi um filme exigir respeito, foi naquela sala. E os catorze minutos e dois segundos que se seguiram são, na minha opinião, cinema puro. Tudo o que me foi ensinado como guionista está nessa sequência. ‘Mostra, não contes’. ‘A personagem define-se pela acção, não pelo diálogo’. Mas é bastante mais o que isso. É a face de Daniel Day Lewis, a sua ambição impiedosa, o conforto na solidão, a resistência da natureza às agressões do Homem e as vítimas esquecidas que provoca, a ganância, a evolução e os únicos momentos de verdadeiro carinho que Daniel Plainview (uma das mais bem construídas personagens do cinema americano, talvez apenas igualado por Michael Corleone) é capaz de demonstrar perante um bebé, como se Daniel estivesse a aproveitar aquela companhia antes que ela se tornasse homem, uma daquelas ‘pessoas’ (todas) que ele tanto despreza. Tudo isto – tema, ambiente, desenvolvimento da acção, caracterização de personagem - é dado sem uma única linha de diálogo. É, por outras palavras, genial.

(O que é curioso, considerando que Daniel Day Lewis começou a trabalhar a personagem através da voz, enviado cassetes ao seu realizador onde falava e lia textos com o tom que decidiu adoptar, uma espécie de John Huston em Chinatown)

Cento e cinquenta e dois minutos depois, as luzes da sala voltaram a acender-se. Os aplausos duraram pelo menos meia hora, até porque entretanto os três convidados entraram, subiram ao palco, puxaram das cadeiras e ficaram, todos eles meio envergonhados, à espera que as pessoas se sentassem.

Depois, houve perguntas. Muitas. Vou falar apenas de duas porque as suas respostas também são uma lição, agora não de cinema, mas de vida. Alguém perguntou a Paul Thomas Anderson se aqueles primeiros quinze minutos são uma homenagem ao cinema, se ele sabia que era um momento de génio, qual a sua intenção? PTA sorriu, levou a mão à cabeça, pensou durante uns segundos, sorriu de novo e respondeu, com o que me pareceu honestidade total: ‘Sinceramente, o que aconteceu é que não me lembrei de nada que as personagens pudessem dizer. Quando descobrem petróleo, por exemplo, o que é que eu ia escrever? ‘We’re gonna need more buckets?’.

(Aprendi que, se alguém disser que é um génio ou um ‘artista’, o mais provável é que esteja muito longe disso. Os grandes momentos culturais ou de brilhantismo surgem assim, de pessoas que apenas fazem o melhor que conseguem).

Depois, a minha irmã perguntou ao Daniel Day Lewis como é que ele tinha pensado a transformação da personagem em termos físicos, em particular na cena final, em que Daniel Plainview está quase transformado num ogre de costas curvadas e andar ameaçador. Também aqui, a simplicidade da resposta. ‘Não pensei. Se tivesse racionalizado demasiado isso, é porque estava a fazer alguma coisa de mal. Apenas pareceu fazer sentido. Apenas aconteceu’.

Escolhi, para falar aqui, do ‘Haverá Sangue’ por uma razão, tal como poderia ter escolhido uma cena do The Wire ou qualquer detalhe do Chinatown.

Porque vivo num país onde me dizem constantemente que a cultura e o cinema de qualidade deve ser inacessível, que quando não percebo alguma coisa é porque não sou inteligente o suficiente e onde os auto-proclamados génios abundam e utilizam os seus próprios insucessos como prova de qualidade.

E, em momentos como naquela sessão de cinema não convencional em Nova Iorque, tive a certeza absoluta que aquilo que me tentam dizer está errado.


*Tiago R. Santos é guionista

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Encontro Imediático com Joana Frazão

A Casa que Eu Quero, de Joana Frazão e Raquel Marques





A ideia nasceu numa viagem pelo País, com a amiga Raquel Marques, também ela licenciada em Cinema pela Universidade Nova. Pela janela desfilavam rotundas e casas de emigrantes, enormes, muitas vezes insólitas, desafiadoras dos planos urbanísticos e das convenções regionais. E resolveram realizar um documentário, mesmo assim, on the road, em que cada casa avistada determinasse uma paragem. E fazer aquilo que, no fundo, todos os viajantes gostariam e nunca tiveram coragem: bater à porta e espreitar lá para dentro. Por falta de apoios e facilidades logísticas, Joana e Raquel circunscreveram o documentário a Covões, aldeia «que nem café tem, foi fechado pela ASAE», em Paredes de Coura. Assim nasceu o documentário A Casa Que Eu Quero (antestreado na Cinemateca), e que mostra o lado de lá destas paredes de berma de estrada. As realizadoras partiram para este projecto com alguns estereótipos. Assim que transpunham as portas das maisons, muitos deles anularam-se. Não é, afirma Raquel, também tradutora nos Artistas Unidos, um documentário voyeurista. «As pessoas abriam-nos as portas e sentiam orgulho em mostrar-nos as casas, mas foi um filme motivado pela curiosidade, isso sim. Digamos que se tratou de espreitar de uma forma delicada.» Estas casas já não têm azulejos nem se parecem com chalets suíços, estão muito mais padronizadas, mas também têm algo de exibicionismo: as pessoas querem mostrar que lhes correu bem a vida lá fora, por isso há tantas varandas, jardins e sobredimensão. Lá dentro, as cineastas descobriram uma espécie de mundo alternativo, são casas normalmente fechadas o ano inteiro, só ocupadas durante o Verão, quando os emigrantes chegam de férias. Há uma sensação estranha, de vácuo, de despertença. Mas, no fundo, também exprimem uma grande necessidade de «um sítio onde possam voltar». Nas paredes das casas, as marcas de raízes já desapegadas, vidas de muito trabalho, um velho vestido de noiva, a sensação de se ser estrangeiro em duas terras. Enfim, diz Joana, o documentário não pretende ser um tratado sociológico, é apenas um filme honesto, que tem as marcas dos poucos meios com que foi feito. O objectivo de Joana e Raquel é continuarem a realizar documentários. O próximo já está a ser pensado. Será sobre casamentos, o dia da boda. No fundo, um desdobramento do tema das casas de emigrantes. Algo em que muito se investe e que também serve para mostrar.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Sangue, suor e fado

Bobby Cassidy, CounterPuncher, de Bruno de Almeida






«Cidade sobrevivente de um futuro sempre ausente». O excerto do fado de Camané, com letra de Manuela de Freitas, não tem nada a ver com o novo filme de Bruno de Almeida, Bobby Cassidy, CounterPuncher (estreia-se hoje), um documentário centrado na extraordinária figura de um boxeur profissional americano reformado. E daí, talvez até tenha, senão não teria surgido no meio da conversa com o realizador, que já tinha usado este fado no retrato fragmentado, e algo desencantado, de Lisboa, em Lovebirds (2007). É de sobrevivência que se trata. Era assim nas várias histórias que compunham a longa anterior, é assim na vida deste pugilista canhoto, que participou em mais de 80 combates, ganhou 60, teve 16 derrotas, 1 indecisão e 27 KOs. Combateu com grandes estrelas do boxe mas nunca chegou ao topo. Mas sobreviveu. Sempre. E apesar de tudo. Mesmo quando tinha de reunir os pedaços de si caídos, no meio do ringue e no meio da vida. Sobreviveu a uma mãe alcoólica e a um padrasto que o espancava. «Aos 10 anos queria morrer», conta no documentário. «Hoje chama-se uma família disfuncional, dantes chamava-se uma ‘família de merda’». Tornou-se um miúdo arruaceiro, a dor não o afligia, «fundou a vida na raiva». «Para se ser boxeur é preciso ter um rudeza inata». No primeiro assalto pôs um tipo KO aos 28 segundos, conta, enquanto enrola metodicamente as fitas nas mãos, antes de enfiar as luvas. Este sentido cerimonial do boxe, «quase como um ritual de preparação para a morte», os códigos próprios de um mundo fechado, o facto de nos EUA existirem clubes de entre-ajuda de boxeurs reformados, abandonados pelos managers, descartáveis, sem apoio social, muitos deles com síndromes graves depois de anos de traumatismos cerebrais... Tudo isto fascinou o cineasta, a viver desde 1985 entre Nova Iorque e Lisboa. Não tanto o desporto, não percebia nada de boxe, aliás, tem dificuldade em chamar-lhe desporto, «é outra coisa qualquer, um acto de sobrevivência, entre a vida e a morte que se joga ali no ringue. Claro que há uma técnica, um virtuosismo, inteligência antes de tudo, mas ligada a um instinto básico animal de sobrevivência», explica. Também uma espécie de dança e de métrica muito típica dos filmes de boxe.

Os boxeurs também se abatem
Partiu da ideia de fazer um documentário geral sobre boxe na América. Com o Belarmino, «um dos mais bonitos filmes do cinema português», na cabeça, entrevistou dezenas de ex-boxeurs, visitou os seus clube e comunidades até que se deparou com Bobby Cassidy. A personagem era demasiado poderosa, decidiu consagrar-lhe todo o filme.
Intercalando as entrevistas com imagens de combates e fotos de época, num filme dividido em rounds, Bruno vai dando a conhecer este homem. 1º round: «Desde a infância diziam que não ia ser ninguém mas fui bom naquilo que fiz». Uma vez levou 122 pontos, teve de limar o osso da testa e a pele já tão macerada de cicatrizes. Não chegou a ver estrelas, «eram uma espécie de teias de aranha». O realizador começou o filme umas semanas antes do pai morrer, fazer o filme foi, para ele, uma espécie de luto. É que o boxeur violento, que depois de largar os ringues se dedicou às cobranças, andou pelos bas fonds do crime, cumpriu pena na prisão, também tinha um coração paternal, muito dedicado ao seus dois filhos.
Depois do celebrado documentário Amália –Estranha Forma de Vida (1994) e do filme sobre a fadista que passou no circuito americano. Depois do documentário 6=0 Homeostático, que ganhou uma menção honrosa no DocLisboa 2008, é a vez de Bruno de Almeida enrolar as fitas nas mãos para o 10º round: Operação Outono, um film em torno do assassinato de Humberto Delgado. Começará a rodar em Dezembro, escreve neste momento o guião com Frederico Delgado Rosa, autor de uma recente biografia, e neto do General. Sem medo. Apenas alguma apreensão: «Tenho de me concentrar muito».

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Seja o que Deus quiser


Um Homem Sério, dos Irmãos Coen






Tal como em Irmão onde estás, os irmãos Coen seguiram a estrutura da Odisseia, em Um Homem Sério reproduzem o Livro de Job. De um lado, o clássico dos clássicos gregos, do outro um dos mais estruturantes livros do Antigo Testamento. A filosofia inerente está resumida na epígrafe, uma frase do rabi Vashi, porventura o mais famoso intérprete da Bíblia na Idade Média, que aconselha: «Recebe com simplicidade tudo o que te acontece». Esta frase, numa leitura do livro de Job, por si só, é matéria prima mais do que suficiente para uma das mais inteligentes comédias dos Coen. As leituras religiosas transbordam para fora do filme. Mas a tese que está em debate é mesmo a resignação.
Por aí várias questões se levantam, que não são o sujeito palpável do filme, e que se prendem sempre com o judaísmo. Há quem diga que foi essa leitura do Livro de Job, ou do espírito do texto que lhe está subjacente, o apela à passividade, que fez com que os judeus se submetessem ao crudelíssimo regime nazi sem oferecer uma resistência organizada. Os nazis ter-se-ão aproveitado do facto de vir nas Escrituras a ideia de rendição ao destino, para o Holocausto. Aqui esse povo judeu resignado ao destino está resumido na personagem de Larry Gopnik, maravilhosamente interpretada por Michael Stuhlbarg. Um judeu que aceita com tal passividade tudo o que lhe acontece que é abusado por todos, mesmo pelos próprios judeus.
Lado a lado, há o conceito de culpa. Larry repete ene vezes ao longo do filme: «Mas eu não fiz nada», manifestando a sua inocência, como se a não acção fosse o suficiente para se libertar da culpa. Pode-se partir daqui para o episódio do Novo Testamento de Jesus com os fariseus. Em que estes são criticados exactamente por nada fazer, servindo a parábola de exemplo para o pecado por omissão.
Esta personagem que aceita com simplicidade todos os males que a vida lhe traz é o mais perfeito retrato cómico, com um potencial humorístico quase ilimitado, também de humor físico. Tudo lhe acontece, até o cúmulo do melhor amigo lhe roubar a mulher, e ele aceita tudo isto com simplicidade. Parte de rabi em rabi em busca de respostas, e tudo o que obtém são parábolas repetidas e tolas. Só que ele nunca reage e as desgraças vão-se sucedendo de cúmulo em cúmulo. Tornando-se um duro golpe na própria religião (judaica e cristã).
Um Homem Sério está longe da violência bruta e seca de Este País Não é para Velhos, que lhes valeu, entre outros, o Óscar de melhor filme. Mas também não é uma comédia despretensiosa, ao estilo do anterior Destruir depois de ler, é provavelmente um dos filmes de Coen mais difíceis de enquadrar, até porque começa por ser falado em polaco.
Talvez desde Barton Fink que nunca se expuseram de forma tão clara. Em aqueloutro contavam a história de um guionista, neste contam uma história profundamente judaica. Um filme de época, passado nos anos 60, em que o judaísmo ainda é preponderante, nota-se no entanto a construção de um vazio, de uma sociedade nova, laica ou laicizante, mas vazia de princípios. É esse o tornado que vai arrebentar com aquele mundo e que Larry, como sempre, aceita impávido e sereno.
É mesmo difícil enquadrar este filme na riquíssima obra dos Coen. Está distante dos filmes mais recentes, mas também dos primeiros. Talvez se encontrem pontos de contacto com Irmão, Onde estás? e Barton Fink. Mas é melhor do que qualquer um deles. Um Homem Sério é o regresso em grande de uma dupla que não pára de nos surpreender.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O último dia do resto da vida dele

Um homem solteiro, de Tom Ford







Parece que George Falconer (Colin Firth) um professor de inglês emigrado na Califórnia anda muito desgostoso. Parece... mas ele não mostra muito, porque além de ser um gentleman britânico, tem um extremo bom gosto e não gosta de exteriorizar os sentimentos. Parece que perdeu o seu companheiro de longa data, num acidente, e isso torna-o uma espécie de viúvo sem direito a assistir ao funeral (a causa gay). Parece também que vive numa casa fantástica, que tinha dois cães amorosos, gosta de manter tudo muito arrumadinho. Parece que tem um emprego agradável, e é apreciado pelos alunos. Parece que tem uma amiga muito solícita (Julliane Moore) que gosta de gin e de lhe fazer festinhas no cabelo. Parece que não gosta de espalhafato por isso prepara metodicamente o seu suicídio... Parece que encena tão bem o seu último acto que até lhe passa pela cabeça se a mancha de sangue combinará com o tapete do quarto. Parece...

Parece, e é esse o problema do primeiro filme do estilista Tom Ford, ex-diretor artístico das marcas Gucci e Yves Saint Laurent. Tudo se fica pelo «parece», nada é. As personagens estão tão perfeitamente encaixadinhas no cenário, na maquilhagemm nos penteados e nos figurinos, que não conseguem deixar que alguma emoção ou alguma físico-química entre os actores desalinhe a composição e a estética anos 60, que já vimos dezenas de vezes no cinema. Um Homem Solteiro parece – lá está – um luxuoso anúncio publicitário, com uma vaga e desinvestida história de desgosto amoroso homossexual lá dentro. Tudo parece artificial, pretencioso e estilizado. Cheio de flashbacks que estão lá mais para compor esteticamente a imagem do que por necessidade narrativa. E além do mais, é um filme demasiado arrumado para um homem que supostamente estaria a desfazer-se aos bocados. Mais um destes filmes que só tem parte de fora, falta-lhes a parte de dentro.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Guerra e Paz

Um impate técnico entre Ghandi (Ben Kingsley) e Lawrence da Arábia (Peter O'Toole), ambos com 29% (11 votos) na sondagem do FINAL CUT sobre actores que desempenharam líderes históricos. Imediatamente a seguir ficou Sean Penn, com Milk (13%)... Os visitantes do nosso blogue continuam a preferir os clássicos.

Do épico de David Lean, de 1962, baseado na biografia do próprio oficial britânico, fiquem com esta cena- talvez uma das melhores do filme. É aquela em que Omar Sharif aparece. Ou melhor vai aparecendo, lá ao longe, primeiro é uma quase invisível nuvem de areia no horizonte, talvez uma miragem, talvez a distorção do calor do deserto. Depois os contornos vão-se tornando mais visíveis, é um vulto, um homem que cavalga em direcção a Lawrence, ao árabe e ao poço de água. Aproxima-se, aproxima-se, naquele andamento ondulante do camelo. E antes de chegar, já matou um homem, só se lhe vê a face passado quatro minutos, quando desenrola o lenço. Só se apresenta a Lawrence aos 5 minutos. É, sem dúvida, uma das melhores introduções de personagem de sempre...


«He is coming». Outra grande entrada em cena de Gandhi em cena. Nomeado para 11 óscares e ganhador de 8, no filme de Richard Attenborough de 1982, o rosto do actor Ben Kingsley não mais se descolou do líder e fundador do Estado Indiano, por mais grandes papéis que tenha feito a seguir.
Aqui fica um apanhado dos vários rostos de um grande actor

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A vida entre murros

Encontro imediático com Bruno de Almeida a propósito do filme Bobby Cassady, the Counterpuncher





O autor daquele que é porventura o documentário português mais visto em todo o mundo, The Art of Amália, está de regresso ao género, com um filme… americano. Em Bobby Cassady, the Counterpuncher, Bruno de Almeida, mostrar-nos a mais fascinante das personagens: um pugilista aposentado que já fez de tudo na vida, incluindo jogar boxe. Uma história humana, sensível e do mais rico microcosmos, que chega aos cinemas em Portugal, no dia 18, depois de ter passado pelo DocLisboa.

Como chegou a Bobby Cassady?

Bruno de Almeida: Em 2001, comecei a preparar um documentário, com o título provisório After theFight, sobre boxeurs reformados nos Estados Unidos. A maneira como têm que lidar com o punk drunk brunk que é uma doença em que começam a perder a memória, por levarem muitas pancadas no cérebro. E também pela questão de serem os únicos desportistas sem apoio nenhum. Descobrimos que nos Estados Unidos existe, em cada cidade, uma associação chamada Ring, onde eles se encontram e se entreajudam, com uma camaradagem incrível.

Isso ainda é mais incrível se pensarmos que eles andam a dar murros na cara uns dos outros anos a fio…

É verdade, existe até uma certa rivalidade entre bairros. Foi assim que conheci o filho, o Booby Cassady Jr, que me contou histórias do pai. Apercebi-me então que era a essência do que eu estava à procura. Surgiram depois uma série de coincidências, como o facto de o Bobby estar a treinar o Robert De Niro que é meu amigo.

Este interesse pelo boxe já vem de trás. Em Love Birds apareciam cenas de pugilismo com o Fernando Lopes como treinador (numa homenagem a Belarmino)…

Sim, claro.. Mas eu não sabia muito sobre boxe, nem logo ao desporto em geral. O que mais me interessou no boxe foram as personagens. Interessam-me coisas com as regras fechadas, os seus próprios códigos de vida. E o boxe é um bocado isso, tal como acontece no fado. Sempre me gostei de filmes sobre boxe, embora não seja fã do desporto propriamente dito.

Não teve a oportunidade filmar os acontecimentos da vida de Bobby Cassady porque não estava lá, foi por isso teve de se socorrer a um esquema formal bastante simples e minimal?

Passei um ano e tal com ele e filmei-o muito. Mas depois achei que a complexidade do tema ficava a ganhar com uma simplicidade formal do filme. Por isso decidi construi-lo à volta da primeira entrevista que fiz, porque me pareceu mais espontânea, e tinha todos os elementos de que precisava. A primeira versão do filme era muito crua, algo tão cru como um combate de boxe. Era só a entrevista, sem nenhuma sequência de boxe. Foi uma tentativa arriscada de fazer um filme inteiro praticamente só com um close-up. Mostrei-o ao Fernando Lopes que sugeriu que eu usasse sequências de boxe e sons. Fui então à procura de filmes para ilustrar. E encontrei coisas maravilhosas, porque na altura, nos anos 60 e 70, tudo era filmado em película. O filme tomou assim outra dimensão. O Miguel Martins fez um trabalho extraordinário na busca de sons.

No meio disto, teve a felicidade de ter um contador de histórias nato…

Fabuloso. É tão incrível que quase bastava ouvi-lo. Mas as imagens ajudam, porque dá para ver como ele era um lutador extraordinário. Ele quase nunca leva um soco. Em 80 combates teve apenas 16 derrotas, o que é notável. Isto apesar de nunca ter conseguido chegar a campeão.

Essa é a pedra no sapato…

Mas é isso que dá a contradição da sua própria vida. Se ele tivesse sido campeão a história seria outra. Ele é o que os americanos chamam de journey man, vai semana a semana aqui e ali para ganhar a vida.

E é verdade que ele treinou o Robert De Niro? Porque não aborda no filme?

Achei que não tinha grande interesse e que não era muito oportuno explorar a sua amizade. Ele treinou o De Niro muito depois do Touro Enraivecido.

Pensa voltar ao boxe?

Sim, estou à espera de uma ideia de montagem para terminar aquele filme sobre os boxistas reformados, porque são histórias fascinantes, não só de homens mas também de mulheres. E tenho um projecto de ficção à volta da história do Bobby Cassady.

Sei que agora tem um projecto maior, em que vai contar a história do General Humberto Delgado…

É sobre a Operação Outono, que é o nome de código da operação que levou ao assassinato de Humberto Delgado. É um filme histórico, passado em cinco países que vai desde 1965 a 1981. Estamos agora a iniciar a preparação, para filmar em Dezembro. É um filme muito complexo, maior do que qualquer outro que tenha feito. Tem de ser tudo muito bem analisado, porque são factos reais. É algo completamente diferente, embora haja semelhanças entre o Humberto Delgado e o Bobby Cassady.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Woody regressa a casa


Tudo pode dar certo, de Woody Allen







Já vimos este filme, mas pouco nos importa, queremos vê-lo vezes sem conta. Woody Allen voltou a Nova Iorque e nós sentimo-nos em casa, Tudo pode dar certo é o seu melhor filme desde Matchpoint. A melhor comedia desde Poderosa Afrodite. Uma comedia pura de rir e chorar por mais. Ironicamente nós, europeus, sentimo-nos mais próximos do Allen de Nova Iorque do que aqueloutro de Barcelona ou mesmo de Londres. Talvez por o cinema, pela sua indústria, nos ter aconchegado na América, mas também porque é ali que o autor de Manhattan faz mais sentido. Dá a ideia que se reconciliou com o mundo, tal como NY, aos pouco se vai reconciliando consigo própria após o 11 de Setembro. Mas na verdade, a única coisa que aconteceu, foi que Woody Allen resolveu resgatar um guião que estava perdido na gaveta há três décadas.

Logo a primeira cena do filme é uma imagem comum em Allen. A câmara vem do céu e desce sobre um grupo de homens, de calções, que conversam numa esplanada e pedem que Boris (o alter-ego de Allen, representado por Larry David) conte a sua história. Mas logo ali tem um pequeno golpe engenhoso. Boris assume-se como protagonista do filme reconhecendo a plateia. O estratagema, obviamente, não é novo, remonta a Pirandello e tem sido usado aqui e ali como no caso de Funny Games, de Michael Haneke. No contexto alleniano pode ser visto como o reverso de Rosa Púrpura do Cairo, na extraordinária e mágica obra de 1985, Mia Farrow apaixona-se pelo actor e entra pelo ecrã adentro. Aqui a mistura entre realidade e ficção dá-se de forma oposta: é o actor que sai pela sala a fora e nos interpela directamente.

Isso ajuda a construção de uma personagem que Allen talvez já tenha interpretado, mas nunca de forma tão veemente ou radical. Boris está zangado com o mundo. O seu pessimismo realista é completamente destrutivo, não só de si próprio como de tudo o que o rodeia. E a sua arrogância intelectual é ilimitada. Um intelectual rezingão sem papas na língua que, como qualquer outro monstro, encontra a sua bela, que o transforma, que o desconstrói e quase destrói.

A arrogância de Borisé plenamente justificada e testemunhada por nós, espectadores. Porque ele é a única personagem que convive connosco, sabe da nossa existência. É por isso que vê mais do que os demais, é um iluminado, um visionário. As suas doutrinas, assim, ganham consistência na medida em que, connosco, é ganha a cumplicidade, directa, única e inabalável. Essa comunicação com a audiência faz com que, apesar da sua rezinguice e má-criação, do seu fel, nos sintamos mais próximos de si do que de outras personagens simpáticas e agradáveis.

Curiosamente, a história de Boris sustém uma filosofia de vida resumida no título do filme (em inglês, Whatever Works). Que é uma teoria de descomplicação, contrária à elaboração vulgar em Allen, em que tudo se torna absurdamente complexo. Aqui é defendido, pura e simplesmente, o quer que funcione, seja a relação entre um velho intelectual mal-disposto e uma semi-adolescnte provinciano, seja um casamento gay, seja um ménage a trois. Complicar para quê?

O guião é habilidosamente escrito, com diálogos ao melhor nível. Estão aqui algumas estiradas que, seguramente, vão passar a figurar nas listas de citações de Allen que abundam na Internet. Um sarcasmo hilariante, que tudo corrói até a sua própria racionalidade. Já há alguns anos que estávamos sentados, naquela esplanada encalorada de Nova Iorque à espera que Woody Allen chegasse. É bom tê-lo de volta.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O fado da desgraçadinha

Precious, de Lee Daniels






Anos e anos de diegese, de tratados de narratologia, de modelos ancestrais de arte de contar e convencer. E até o bom do Aristóteles havia de repetir aos seus discípulos de antes de Cristo os seus conceitos de verosimilhança da Poética: o que aconteceu mas não é verosímil não serve para o drama, ouviram?... Não serve, não dá, não vale a pena, não funciona, não resulta, desistam... E há-de haver sempre alguém que faz tábua (ar)rasa de todos os ensinamentos ancestralmente testados... Ainda que venham dos venerandos mestres de toga e sandália. Vem isto a propósito do filme Precious (estreia-se hoje), do realizador Lee Daniels, que quis fazer um filme pungentemente trágico, e dolorosamente tocante e nem uma lágrima ao canto do olho conseguiu puxar – o que já seria mau. Lee fez pior. Quase transforma uma tragédia numa comédia, embora ao longo do filme não haja oportunidade nem para o mais cínico e retesado esgar. A não ser que a algum espectador lhe ocorra o célebre sketch dos Monty Python dos homens ricos, em que cada um começa a desfiar as misérias da sua vida. Um começa por dizer que dantes a família era muito pobre e bebia chá frio, sem leite e sem açúcar. Outro acrescenta «e por uma chávena partida». O outro diz que nem chávenas tinham, se queriam beber aquilo era por um jornal enrolado. E o quarto diz que na família dele tinham de sorver o chá de um trapo velho. Daí a nada já viviam 26 pessoas num quarto sem mobília, em que metade do chão tinha desabado, os outros dentro de um tanque velho numa lixeira, os outros num buraco velho num charco, os outros numa caixa de cartão no meio da estrada, os outros enrolados numa folha de papel...
Em suma, não quer dizer que nos Harlem dos anos 80 não houvesse vidas incomensuravelmente lamentáveis, que se arrastavam miseravelmente para além do que prometia a força humana. Ao realizador bastava-lhe seleccionar uma desgraça para que o dispositivo da tragédia e da comiseração se accionasse. Escusava de acumulá-las a todas. Senão vejamos: temos Claireece Jones (Precious), uma teenager com obesidade mórbida. Como se já não fosse pouco, nas escola chamam-lhe «orca» e «aberração», na rua atiram-na ao chão, sente-se um «monte de gordura negra para ser varrida». Ainda por cima, é expulsa da escola, aos 16 anos não sabe ler nem escrever e a mãe chama-lhe cabra e atira-lhe latas de comida à cabeça, e quer é que ela deixe de estudar para pedir um subsídio à segurança social. Para piorar ainda mais a situação, ela está grávida. Querem pior ainda? Está grávida do segundo filho. Há algo mais que lhe possa acontecer? Claro. O filme ainda só vai a meio. É que o progenitor dos filhos é o seu próprio pai, e a miúda nasceu com trisomia 21 e chamam-lhe «monga». E a mãe ficou ressabiada porque «o homem dela fez mais filhos à filha do que a ela». E no primeiro parto, Precious estava no chão da cozinha com a mãe a dar-lhe pontapés na cabeça. Não há dúvida de que é preciso inventar um novo conceito. Para uma criança espancada e insultada por todos e violada pelo pai... e pela mãe, digamos que chamar-lhe «família disfuncional» é pouco. Bem, para abreviar a questão e não tornar a leitura demasiado penosa, diga-se apenas que a mãe a obrigava a comer chispe de porco com pêlos, que há uma cena de violação incestuosa em que o mau gosto envolve cenas intercalares de ovos estrelados a deslizarem na gordura, e que a mãe amamentava o marido e dava biberão à filha. Ainda há um bebé a rolar por uma escada e uma TV quase a despenhar-se-lhe em cima... Bem, para rematar isto tudo, esta gente toda é HIV positiva, pois então, nada de dar tréguas à assistência. Os estômagos nunca estão suficiente esmurrados. A inexperiente actriz Gabourey Sidibe (nomeada a Óscar tal como a obra na categoria de Melhor Filme) não tem qualquer margem de manobra de representação, limita-se ao registo ‘aqui vou eu a arrastar-me neste lodaçal de infortúnios’ – excepto numas cenas enchertadas, perfeitamente intragáveis, que representam as fantasias da miúda e misturam passadeiras vermelhas, fotografias que falam, coros de gospel, ela vestida de pop star disputada por imensos homens brancos, ou a sua imagem no espelho enquanto loura magrinha. Claro que trazer para protagonista uma afro-americana XXL que foge aos mais condescendentes padrões de beleza é um mérito do filme. Mas julgamos que, apesar das boas intenções, depressa se desliza para o voyeurismo. De boas intenções está o cinema cheio. E o programa da Oprah (produtora deste filme) também.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Eric, o carteiro de Cantona


O meu amigo Eric, de Ken Loach






A ameaça foi feita em 2005. Na curta-metragem, o filme-anedota que Ken Loach realizou para Cannes revelou um sarcasmo terrífico. O próprio Ken Loach aparecia com o filho na fila da bilheteira do cinema. Perante o crescente desespero do resto dos espectadores, vão analisando com entusiasmo as propostas da sala: um filme de acção, um de aventuras, uma comédia, uma animação. Até que Loach sugere: «E se fôssemos ao futebol?» Dito e feito.
Em À Procura de Eric, Loach faz precisamente o contrário: leva hooligans ao cinema. Para tal conta com o próprio Eric Cantona, para quem não sabe, um francês que foi a maior estrela do clube inglês na era pré-Cristiano Ronaldo. O registo só não surpreende mais porque já vimos Quem Quer Ser John Malckovitch, de Spike Jonze, mas não deixa de ser uma obra original num realizador de exibições irregulares. Aqui não fica fora-de-jogo.
Já se sabe que os ingleses acreditam em fantasmas, mas este tem um feitio peculiar, que torna o filme tão disparatado que até tem graça. O Meu Amigo Eric, é a história de um carteiro de Manchester, cuja vida está feita em cacos. Começa a ter alucinações, e aparece-lhe então o lendário jogado de futebol do United… para lhe dar conselhos. Aquele que se tornou famoso também por ser intempestivo e por, certa vez, ter dado um pontapé na cara de um adepto, torna-se assim num conselheiro… sentimental, entre outros. Talvez funcione por ser francês e lhe responder muitas vezes com provérbios… em francês. De forma mais ou menos criativa e anímica, o fantasma de Cantona faz com que Eric recomponha a sua vida e ganhe um novo fôlego.
Não é propriamente a estreia de Eric Cantona no cinema, depois de ter arrumado as botas, o jogador de gola levantada aventurou-se pelo mundo do cinema, em oportunidades fugazes, como em Elizabeth, de Shekhar Kapur. E até tem jeito. Aqui representa-se tão bem a si próprio como Catherine Deneuve em Eu quero ver. Do filme, poder-se-iam tirar alguma ilações simplistas sobre o socialismo ou lições baratas de filosofia de vida, mas na verdade serve apenas para dar umas boas gargalhadas. O que não é pouco. E, que fique claro: nada tem a ver com O Carteiro de Pablo Neruda.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A vitória dos sapos

A Princesa e o Sapo, de Ron Clements e John Musker





A Princesa e o Sapo é um clássico instantâneo da Disney, à moda dos bons velhos tempos, que encanta miúdos e graúdos. Um filme que convence pela sua criatividade não tecnológica.

Numa altura em que só se fala em 3 D, com a euforia de Avatar, e a moda que há muito se aplica ao cinema de animação, a Disney aposta num filme de puro desenho, chapado no ecrã, assumidamente de animação, sem tentar imitar a imagem real. O resultado é maravilhoso. A Disney coloca-se assim, simultaneamente, na corrente e na contracorrente: já em Março estreia a Alice, de Tim Burton, em 3D que se espera que seja, pura e simplesmente, o mais espectacular filme de animação jamais feito. Para já, dá voz a uma ideia que o 3D não terá de ser a única saída. Aliás, há muito se esperava a resposta da indústria às técnicas computadorizadas de imitação da imagem real, pois o modelo parece esgotado. Mais do que isso, da forma como tem sido feito, limita a criatividade gráfica, o que tem sido compensado pela habilidade dos argumentistas.

A princesa e o sapo é graficamente muito imaginativo, aproximando-se de uma linguagem de animação de escola europeia ou de filmes mais antigos da Disney. A nível artístico, de deslumbre estético, é do que melhor se viu nos último anos na indústria da animação a seguir à primeira parte de Wall-E.

A aposta em filmes de animação que assentam na qualidade dos desenhos pelas grandes produtoras está dependente do sucesso deste filme. Mas atendendo ao entusiasmo que se tem verificado, parece-me óbvio que será um caminho paralelo a seguir (sem abdicar do 3 D).

Mas há outras questões que fazem de A Princesa e o Sapo um dos mais significativos filmes de animação dos últimos anos. Talvez fruto da eleição e da popularidade do presidente Borak Obama, pela primeira vez a Disney apresenta uma princesa negra, contradizendo a capa da Vanity Fair que afirma que todas as grandes actrizes dos anos 10 serão brancas.

Além disso passa-se em Nova Orleães, uma das mais deprimidas regiões dos Estados Unidos que, para cúmulo, foi recentemente vítima de um flagelo chamado Katrina.

Nova Orleães também é a terra do jazz, que se ouve em todo o filme, como não acontecia na Disney desde os Aristogatos. A banda sonora jazzística é composta por um senhor habituado a ganhar Óscares com músicas para filmes: Randy Newman.

O filme, de resto, tem a estrutura de um musical, resgatando assim para a animação um outro formato que tem vindo a ser recuperado para os filmes de imagem real.

A história está muito bem construída, aproveitando a rica tradição de Nova Orleãs, de música, gastronomia e magia negra. Ao contrário do que acontece com outros filmes, as imagens ‘falam’ mais do que as personagens.

A moral está no sítio exacto, dando a lição que o mundo inteiro, e particularmente os Estados Unidos, precisavam de receber. Actualíssima. Que contradiz a ideia yuppie de que tudo se consegue com o trabalho, colocando-o como no mais elevado dos patamares. Tiana trabalha noite em dia, alimentando o sonho (americano) de juntar dinheiro suficiente para abrir um restaurante. Mas quando está quase apercebe-se que isso não é de todo o mais importante. O mais importante é o amor e a fraternidade, nem que isso faça de nós sapos eternos, em vez de príncipes e princesas.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Cuidado com as limitações



É verdade que a vida imita a ficção, mas nunca ninguém a processou por plágio. Woody Allen dizia que a «vida não imita a arte. A vida imita os maus programas de ficção». Enfim, aqui vai a arte ao contrário, quando resolve imitar a vida e as personagens reais.

Agora que está em cartaz Invictus, de Clint Eastwood, que fala da estratégia política de reunificação de um país, pelo recém-empossado presidente Mandela, relembramos algumas personagens políticas (ou vagamente políticas) cujo ADN de celulóide já se confunde com os cromossomas da história.

Às vezes são as personagens que tornam os actores famosos, outras são os actores que celebrizam a personagem.

Daqui a pouco, mesmo aqui ao lado, pode votar no inquérito sobre qual a melhor personagem política encarnada por alguns actores famosos

CLEOPATRA, de Joseph L. Mankiewicz – ELIZABETH TAYLOR – O filme com o mesmo nome, realizado em 1963, mostrava ascensão e queda da rainha do Nilo com mais eye-liner de sempre. Os cenários eram sumptuosos, Elizabeth Taylor trocava 65 vezes de roupa (um recorde), os estúdios quase foram à falência e o filme não ganhou Óscares nas categorias principais. De qualquer maneira, à rainha egípcia ficou para sempre gravado o rosto de Taylor. Dela e da outra desenhada por Uderzo, a tal que Obelix dizia que tinha um belo nariz.

W (GEORGE W. BUSH), de Oliver Stone – JOSH BROLIN – Brilhantemente interpretado por este actor, aquele que já é considerado o pior presidente americano de sempre está mais perto do retrato pela maneira de falar e pelas rugas na testa do que pelas parecenças físicas. O filme é quase uma comédia, a realidade é que é trágico

A RAINHA (ELIZABETH II), de Stephen Frears – HELEN MIRREN – A actriz brilhou com uma impressionante economia de recursos. Aliás, neste filme de um misto de solenidade, elegância e humor very british, a rainha não é a única celebridade contemporânea. Para além da família real, também aparece Tony Blair aparece na pele do actor Michael Sheen que voltará a ser citado neste post

MILK ( Harvey Milk), de Gus Von Saint –SEAN PENN - Não foi propriamente um Malcon X, mas tornou-se um mártir gay, colocado num pedestal pelas comunidades GLT do mundo inteiro. Chegou a ser considerado pela TIME uma das personalidades mais influentes, primeiro político eleito homossexual assumido. O filme é desconsoladoramente convencional, mas Sean Penn é genial na pela desta outra que se intitulava «a rainha número um». E no exercício das suas funções de corta-fitas, uma vez disse: «Sou o único político que a seguir a cortar uma fita tem vontade de a colocar na cabeça». Uau!

FROST/NIXON (de Ron Howard) – MICHAEL SHEEN e FRANK LANGELLA. Uma modalidade curiosa de filme/entrevista em que os dois actors estão num ringue cheio de holofotes e câmaras durante uma entrevista real que durou várias dias. Langella foi nomeado aos Óscares em 2008. Depois de entrevistador e de Tony Blair Sheen vai aparecer no esperado Alice de Tim Burton, a fazer de coelho branco.

CHE (de Steven Soderbergh) - BENICIO DEL TORO – O mais enfadonho revolucionário da história do cinema no também mais sensaborão dos filmes.

A VIDA PRIVADA de SALAZAR (de Jorge Queiroga) – DIOGO MORGADO – Ah, mas enquanto o companero Che andava lá pelas Sierras Maiestras a infernizar a vida ao ditador Baptista, o nosso ditadorzinho português tinha uma vida amorosa bem catita, uma amante em cada esquina, em cada rosto sensualidade, e ainda a governanta Maria para lhe fazer a cama e pastelinhos de bacalhau....

GANDHI (de Richar Attenborough) – BEN KINSLEY – O actor britânico foi tão marcante na sua actuação que quase já associamos a sua fisionomia à do verdadeiro líder indiano, O filme de 1982, foi nomeado para 11 óscares e ganhou oito

O ÚLTIMO REI DA ESCÓCIA (de Kevin Macdonald) – FOREST WHITAKER – O filme não tinha grande interesse mas Whitaker é sempre memorável. Também neste papel do psicótico e delirante ditador do Uganda.

MARIA ANTONIETA (de Sophia Coppola) – KIRSTEN DUNST – Por mais que os livros de história a mostrem séria e guilhotinada, nunca mais a imagem de Dunst, seus bolos, seus vestidos, seus ténis All Stars nunca mais se descolarão da jovem vienense, rainha no local errado, na data errada.

ÁGORA (de Alejandro Amenábar) HIPÁCIA – RACHEL WEISZ – Pode não ter sido uma figura política, mas os historiadores sustentam que terá sido a influência política que a filósofa e matemática de Alexandria tinha sobre os dignatários romanos que lhe ditaram o martirizado fim.

E muitos mais haveria. A caixa de sugestões está aberta até à colocação do inquérito na coluna da direita. Sugiram, mas depressa...

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O gosto de Bruno de Almeida


Pat Garrett & Billy the Kid (1973), de Sam Peckinpah





Vi ontem, pela primeira vez em ecrã, numa maravilhosa cópia em Cinemascope projectada na Cinemateca, Pat Garrett & Billy the Kid (1973), de Sam Peckinpah, que considero um dos mais belos filmes jamais feitos. O romantismo e utilização lírica da violência em Peckinpah encontram neste filme um dos seus expoentes máximos. Peckinpah consegue contar-nos, mais uma vez, a conhecida história de Billy The Kid, um dos grandes mitos da América, com uma originalidade surpreendente e com uma grandiosidade poética, dando-nos assim um dos mais interessantes épicos do cinema americano dos anos 70. A história paralela dos percursos entre o xerife Pat Garrett (James Coburn) e o bandido Billy The Kid (Kris Kristofferson), estabelece toda a tensão dramática que culmina na cena final onde Pat Garrett mata finalmente Billy The Kid. O filme começa com uma brilhante sequência de genérico, que inclui os famosos “ralentis” de Peckinpah onde vemos uma montagem de planos de Pat Garrett, a ser ele próprio morto, anos depois, por um grupo de homens armados e de planos dos homens de Billy The Kid a disparar sobre cabeças de galinhas que estão enterradas num monte de terra. Esta questão da “morte” de Pat Garrett está sempre presente no filme até à cena final onde, depois de matar Billy The Kid, Pat Garrett dispara para o espelho onde o seu próprio reflexo é estilhaçado em pedaços. Este acaba por ser sempre o tema presente. Garrett era um velho amigo de Billy The Kid, tendo-se tornado depois em sheriff. Temos a sensação que o filme trata desta questão de morte “moral” onde Pat Garrett representa o conformismo de uma sociedade onde o poder e o dinheiro, representado no filme pelo governador (Jason Robarts) e pelos interesses financeiros dos investidores donos das terras, estabelecem as “novas regras”. Garrett, ele próprio um antigo bandido, vende a alma ao sistema e por assim dizer assina a sua própria morte. O personagem de Billy The Kid, brilhantemente representado por Kris Kristofferson, transmite-nos a sensação de liberdade e de “vida”. Romantizado, sem dúvida, o aventureiro Billy representa uma ideia de velho mundo, com códigos de honra e coragem e um sentido da vida para o qual o seu oposto, Garrett, contrapõem o negro e a morte. Como em todos os filmes de Peckinpah, a amizade é tratada uma forma poética e com grande humanidade – a cena final em Fort Sumner, quando Garrett espera que Billy The Kid acabe de fazer amor com a sua amante para depois o matar é dos momentos mais emblemáticos deste código de honra masculino, tão amplamente explorado nos Westerns, de John Ford a Howard Hawks. É também interessante analisar o filme do ponto de visto do que se estava a passar na América na altura em que ele foi produzido. O Watergate, a guerra do Vietname, entre outros casos, representam uma América falida moralmente à beira de um colapso total. Peckinpah consegue-nos mostrar um filme onde a figura de Pat Garrett, o alinhado com o sistema, é uma metáfora da própria América e onde Billy The Kid nos parece uma representação da inocência do oeste, e do verdadeiro “pursuit of hapiness”. Este filme tem momentos de uma beleza extraordinária, como por exemplo a cena onde o Xerife Baker (Slim Pickens) é alvejado e morre em frente ao rio, na presença da sua mulher. Uma das cenas mais bonitas do cinema moderno. Mais uma vez, uma referência ao dinheiro, ao sistema. Baker apenas quer ir passear de barco, está fora de jogo, mas Garrett convence-o com uma valiosa moeda de ouro. O “vender a alma ao diabo” está sempre presente no filme, como que uma moralidade existencial subjacente nas acções entre o bem e o mal. Billy The Kid, ele mesmo, traça o seu destino fatal ao decidir voltar a Fort Sumner depois de ver o que os emissários dos financeiros fazem a Paco, o seu amigo mexicano, torturado até à morte. Com um elenco extraordinário repleto dos melhores actores dos western Pat Garrett & Billy the Kid é uma das obras-primas de Sam Peckinpah, e, a meu ver, um dos melhores filmes de sempre.

*Bruno de Almeida é realizador de cinema. Dia 18, estreia em sala o seu último filme, o documentário Bobby Cassidy - Counterpuncher

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Deseja que embrulhe ou é para viver já?

Tudo Pode Dar Certo, de Woody Allen






Há um certo Professor Higgins que arrepelava os cabelos com os desaires gramaticais cockney de uma vendedora de violetas. Há um Eastwood velho e rezingão que rosnava mais do que sua provecta cadela. Há um avozinho da Heidi com mau feitio que vivia lá nas montanhas dos Alpes. Há o velhote rabugento do UP que levava a casa pelos ares. Há o mal-humorado e sombrio Ebenezer Scrooge que passava indiferente aos gélidos e dickensianos pedintes. E agora há o misantropo judeu Boris Yellnikoff (interpretado por Larry David), que odeia a humanidade, acha que toda a gente é um verme acéfalo e começa o novo filme de Woddy Allen, Tudo Pode dar Certo (estreia-se hoje, dia 4), a interpelar-nos a nós, a assistência, «comedores de pipocas gordurosas, que respiram pela boca como Neanderthais»: «Se querem ver um feel good movie vão levar uma massagem aos pés».


Só que ao contrário de toda esta galeria de personagens embirrantes e anti-sociais, a este Boris nada o vai adocicar ou redimir ou fazer reconciliar-se com a humanidade. Nem uma encantadora Audrey Hepburn, nem um Gran torino na garagem, nem uma netinha suíça, nem um escuteiro diligente, nem uns espíritos natalícios... A graça do protagonista do filme de Allen - um físico nova-iorquino, que um dia esteve para ganhar o Nobel, mas abandonou tudo para dar aulas de xadrez a miúdos «burros, idiotas e cretinos» - nunca se irá tornar mais dócil nem mais transigente com a estupidez alheia ou com o caos do universo nem com a iniquidade da condição humana. Ele continua cáustico, virulento, intolerante, grosseiro, inoportuno, rabugento e com o mesmo hábito de insultar despudoradamente todos os que se cruzam com ele. Aliás, o filme possui o mais divertido catálogo de insultos (é sempre bom ter um armazenamento deles...). E a característica, a da personagem ser indefectivelmente antipática e não mudar ao longo do filme, ao contrário do cliché ficcional, dá-lhe um encanto-extra.

Desde Melinda & Melinda (2004), que o realizador não filmava em Nova-Iorque. E depois de Londres (Match Point, Scoop, Cassandra’s Dream) e Barcelona (Vicky Cristina Barcelona), este regresso à cidade que ele nos ensinou a amar (tantas vezes ao som do jazz) – enquanto tantos outros nos ensinaram a odiar - tem de facto tudo para dar certo.
Aliás, o filme abre com a música do inspirador de sempre do realizado - Groucho Marx - que diz «Hello, I must be going/ I cannot stay, I came to stay/ I must be going/ I’m glad I came but just the same/ I must be going». Este filme é o «olá/adeus» de Woody Allen que já pensa rodar no Brasil. Quanto ao quizilento, neurótico e hipocondríaco Boris Yellnikoff (sim, além de ter mau feitio também têm pânicos nocturnos e só consegue lavar as mãos se cantar duas vezes o ‘parabéns a você’ «porque só assim elimina eficazmente as bactérias») também inicia e termina o filme com um olá /adeus: dois suicídios. Falhados, não se tratasse isto de uma comédia romântica. Da primeira vez fica coxo, o que só lhe confere mais claudicância irónica. Da segunda, aterra em cima de uma médium- o que também tem o seu potencial irónico.

Um dia, chega a casa e há uma pequena e adorável sem abrigo, fugitiva de casa dos pais do Mississipi que lhe pede alojamento só por essa noite. Repugnado com Melodie, a encantadora jovem (a actriz Rachel Wood, apareceu recentemente em The Westler), com as suas tiradas ingénuas e patetas com o seu parco back-ground cultural, Boris clama: «Agora saiu-me uma personagem do Faulkner? Quem és tu, uma pequena Benjy? (o retardado mental do Som e da Fúria, que mal sabe articular palavras).

Boris é o género de pessoa para quem uma picada de insecto pode ser um melanoma e um passeio turístico por Nova Iorque consiste em ir visitar o Museu do Holocausto. Quando Melodie lhe pede para ir ver a Estátua da Liberdade, ele conta-lhe as atrocidades sanguinárias com que se debatiam os emigrantes e fala-lhe sobre o tráfico de escravos. E explica-lhe a teoria da entropia, através de pasta dental: Uma fez cá fora não se pode voltar a pôr o conteúdo outra vez para dentro do tubo. Só que em vez de ser ele a deixar-se contagiar pelo lado solar da jovem, processa-se o contrário. Está bem que Boris é apanhado a dizer alguns clichés dos quais se embaraça, mas continua chato e pessimista e é Melodie que se crepusculiza um bocado, embora sem grande convicção.

O homem contemporâneo e as suas angústias existênciais, a deambulação errónea do universo, o falhanço da espécie humana... Onde é que nós já vimos isto antes? Exacto, nas comédias de Woody Allen dos anos 70. Dá ideia de que Woody se predatoriza a si próprio. Para que não lhe venham uns alienígenas, como em Stardust Memories, dizer-lhe, «os seus filmes antigos é que eram engraçados». Mas há algo de datado, de anacrónico, quer se queira não. A Nova Iorque deste filme filme já não é a Nova Iorque dos pós-11 de Setembro. E na verdade, apesar de alguns pequeníssimos acertos, este era um guião que jazia na gaveta há 30 décadas, e que supostamente era para ter o actor Zero Mostel (que entretanto morreu) no principal papel. Mas o absurdo e a imponderabilidade dos encontros nunca perde actualidade. Mesmo que todas as regras de um universo sem Deus conspirem em sentido contrário, tudo pode dar certo. Basta deixar-nos ir, guiados pelo acaso, conquistado pelo niihlismo derrotista de alguém que - continua a dirigir-se para a plateia- nos acha mesmo desprezíveis. Bem melhor que umas massagens aos pés.