quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Deseja que embrulhe ou é para viver já?

Tudo Pode Dar Certo, de Woody Allen






Há um certo Professor Higgins que arrepelava os cabelos com os desaires gramaticais cockney de uma vendedora de violetas. Há um Eastwood velho e rezingão que rosnava mais do que sua provecta cadela. Há um avozinho da Heidi com mau feitio que vivia lá nas montanhas dos Alpes. Há o velhote rabugento do UP que levava a casa pelos ares. Há o mal-humorado e sombrio Ebenezer Scrooge que passava indiferente aos gélidos e dickensianos pedintes. E agora há o misantropo judeu Boris Yellnikoff (interpretado por Larry David), que odeia a humanidade, acha que toda a gente é um verme acéfalo e começa o novo filme de Woddy Allen, Tudo Pode dar Certo (estreia-se hoje, dia 4), a interpelar-nos a nós, a assistência, «comedores de pipocas gordurosas, que respiram pela boca como Neanderthais»: «Se querem ver um feel good movie vão levar uma massagem aos pés».


Só que ao contrário de toda esta galeria de personagens embirrantes e anti-sociais, a este Boris nada o vai adocicar ou redimir ou fazer reconciliar-se com a humanidade. Nem uma encantadora Audrey Hepburn, nem um Gran torino na garagem, nem uma netinha suíça, nem um escuteiro diligente, nem uns espíritos natalícios... A graça do protagonista do filme de Allen - um físico nova-iorquino, que um dia esteve para ganhar o Nobel, mas abandonou tudo para dar aulas de xadrez a miúdos «burros, idiotas e cretinos» - nunca se irá tornar mais dócil nem mais transigente com a estupidez alheia ou com o caos do universo nem com a iniquidade da condição humana. Ele continua cáustico, virulento, intolerante, grosseiro, inoportuno, rabugento e com o mesmo hábito de insultar despudoradamente todos os que se cruzam com ele. Aliás, o filme possui o mais divertido catálogo de insultos (é sempre bom ter um armazenamento deles...). E a característica, a da personagem ser indefectivelmente antipática e não mudar ao longo do filme, ao contrário do cliché ficcional, dá-lhe um encanto-extra.

Desde Melinda & Melinda (2004), que o realizador não filmava em Nova-Iorque. E depois de Londres (Match Point, Scoop, Cassandra’s Dream) e Barcelona (Vicky Cristina Barcelona), este regresso à cidade que ele nos ensinou a amar (tantas vezes ao som do jazz) – enquanto tantos outros nos ensinaram a odiar - tem de facto tudo para dar certo.
Aliás, o filme abre com a música do inspirador de sempre do realizado - Groucho Marx - que diz «Hello, I must be going/ I cannot stay, I came to stay/ I must be going/ I’m glad I came but just the same/ I must be going». Este filme é o «olá/adeus» de Woody Allen que já pensa rodar no Brasil. Quanto ao quizilento, neurótico e hipocondríaco Boris Yellnikoff (sim, além de ter mau feitio também têm pânicos nocturnos e só consegue lavar as mãos se cantar duas vezes o ‘parabéns a você’ «porque só assim elimina eficazmente as bactérias») também inicia e termina o filme com um olá /adeus: dois suicídios. Falhados, não se tratasse isto de uma comédia romântica. Da primeira vez fica coxo, o que só lhe confere mais claudicância irónica. Da segunda, aterra em cima de uma médium- o que também tem o seu potencial irónico.

Um dia, chega a casa e há uma pequena e adorável sem abrigo, fugitiva de casa dos pais do Mississipi que lhe pede alojamento só por essa noite. Repugnado com Melodie, a encantadora jovem (a actriz Rachel Wood, apareceu recentemente em The Westler), com as suas tiradas ingénuas e patetas com o seu parco back-ground cultural, Boris clama: «Agora saiu-me uma personagem do Faulkner? Quem és tu, uma pequena Benjy? (o retardado mental do Som e da Fúria, que mal sabe articular palavras).

Boris é o género de pessoa para quem uma picada de insecto pode ser um melanoma e um passeio turístico por Nova Iorque consiste em ir visitar o Museu do Holocausto. Quando Melodie lhe pede para ir ver a Estátua da Liberdade, ele conta-lhe as atrocidades sanguinárias com que se debatiam os emigrantes e fala-lhe sobre o tráfico de escravos. E explica-lhe a teoria da entropia, através de pasta dental: Uma fez cá fora não se pode voltar a pôr o conteúdo outra vez para dentro do tubo. Só que em vez de ser ele a deixar-se contagiar pelo lado solar da jovem, processa-se o contrário. Está bem que Boris é apanhado a dizer alguns clichés dos quais se embaraça, mas continua chato e pessimista e é Melodie que se crepusculiza um bocado, embora sem grande convicção.

O homem contemporâneo e as suas angústias existênciais, a deambulação errónea do universo, o falhanço da espécie humana... Onde é que nós já vimos isto antes? Exacto, nas comédias de Woody Allen dos anos 70. Dá ideia de que Woody se predatoriza a si próprio. Para que não lhe venham uns alienígenas, como em Stardust Memories, dizer-lhe, «os seus filmes antigos é que eram engraçados». Mas há algo de datado, de anacrónico, quer se queira não. A Nova Iorque deste filme filme já não é a Nova Iorque dos pós-11 de Setembro. E na verdade, apesar de alguns pequeníssimos acertos, este era um guião que jazia na gaveta há 30 décadas, e que supostamente era para ter o actor Zero Mostel (que entretanto morreu) no principal papel. Mas o absurdo e a imponderabilidade dos encontros nunca perde actualidade. Mesmo que todas as regras de um universo sem Deus conspirem em sentido contrário, tudo pode dar certo. Basta deixar-nos ir, guiados pelo acaso, conquistado pelo niihlismo derrotista de alguém que - continua a dirigir-se para a plateia- nos acha mesmo desprezíveis. Bem melhor que umas massagens aos pés.

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