Tudo Pode Dar Certo, de Woody Allen

Há um certo Professor Higgins que arrepelava os cabelos com os desaires gramaticais cockney de uma vendedora de violetas. Há um Eastwood velho e rezingão que rosnava mais do que sua provecta cadela. Há um avozinho da Heidi com mau feitio que vivia lá nas montanhas dos Alpes. Há o velhote rabugento do UP que levava a casa pelos ares. Há o mal-humorado e sombrio Ebenezer Scrooge que passava indiferente aos gélidos e dickensianos pedintes. E agora há o misantropo judeu Boris Yellnikoff (interpretado por Larry David), que odeia a humanidade, acha que toda a gente é um verme acéfalo e começa o novo filme de Woddy Allen, Tudo Pode dar Certo (estreia-se hoje, dia 4), a interpelar-nos a nós, a assistência, «comedores de pipocas gordurosas, que respiram pela boca como Neanderthais»: «Se querem ver um feel good movie vão levar uma massagem aos pés».
Só que ao contrário de toda esta galeria de personagens embirrantes e anti-sociais, a este Boris nada o vai adocicar ou redimir ou fazer reconciliar-se com a humanidade. Nem uma encantadora Audrey Hepburn, nem um Gran torino na garagem, nem uma netinha suíça, nem um escuteiro diligente, nem uns espíritos natalícios... A graça do protagonista do filme de Allen - um físico nova-iorquino, que um dia esteve para ganhar o Nobel, mas abandonou tudo para dar aulas de xadrez a miúdos «burros, idiotas e cretinos» - nunca se irá tornar mais dócil nem mais transigente com a estupidez alheia ou com o caos do universo nem com a iniquidade da condição humana. Ele continua cáustico, virulento, intolerante, grosseiro, inoportuno, rabugento e com o mesmo hábito de insultar despudoradamente todos os que se cruzam com ele. Aliás, o filme possui o mais divertido catálogo de insultos (é sempre bom ter um armazenamento deles...). E a característica, a da personagem ser indefectivelmente antipática e não mudar ao longo do filme, ao contrário do cliché ficcional, dá-lhe um encanto-extra.
Desde Melinda & Melinda (2004), que o realizador não filmava em Nova-Iorque. E depois de Londres (Match Point, Scoop, Cassandra’s Dream) e Barcelona (Vicky Cristina Barcelona), este regresso à cidade que ele nos ensinou a amar (tantas vezes ao som do jazz) – enquanto tantos outros nos ensinaram a odiar - tem de facto tudo para dar certo.
Aliás, o filme abre com a música do inspirador de sempre do realizado - Groucho Marx - que diz «Hello, I must be going/ I cannot stay, I came to stay/ I must be going/ I’m glad I came but just the same/ I must be going». Este filme é o «olá/adeus» de Woody Allen que já pensa rodar no Brasil. Quanto ao quizilento, neurótico e hipocondríaco Boris Yellnikoff (sim, além de ter mau feitio também têm pânicos nocturnos e só consegue lavar as mãos se cantar duas vezes o ‘parabéns a você’ «porque só assim elimina eficazmente as bactérias») também inicia e termina o filme com um olá /adeus: dois suicídios. Falhados, não se tratasse isto de uma comédia romântica. Da primeira vez fica coxo, o que só lhe confere mais claudicância irónica. Da segunda, aterra em cima de uma médium- o que também tem o seu potencial irónico.
Um dia, chega a casa e há uma pequena e adorável sem abrigo, fugitiva de casa dos pais do Mississipi que lhe pede alojamento só por essa noite. Repugnado com Melodie, a encantadora jovem (a actriz Rachel Wood, apareceu recentemente em The Westler), com as suas tiradas ingénuas e patetas com o seu parco back-ground cultural, Boris clama: «Agora saiu-me uma personagem do Faulkner? Quem és tu, uma pequena Benjy? (o retardado mental do Som e da Fúria, que mal sabe articular palavras).
Boris é o género de pessoa para quem uma picada de insecto pode ser um melanoma e um passeio turístico por Nova Iorque consiste em ir visitar o Museu do Holocausto. Quando Melodie lhe pede para ir ver a Estátua da Liberdade, ele conta-lhe as atrocidades sanguinárias com que se debatiam os emigrantes e fala-lhe sobre o tráfico de escravos. E explica-lhe a teoria da entropia, através de pasta dental: Uma fez cá fora não se pode voltar a pôr o conteúdo outra vez para dentro do tubo. Só que em vez de ser ele a deixar-se contagiar pelo lado solar da jovem, processa-se o contrário. Está bem que Boris é apanhado a dizer alguns clichés dos quais se embaraça, mas continua chato e pessimista e é Melodie que se crepusculiza um bocado, embora sem grande convicção.
O homem contemporâneo e as suas angústias existênciais, a deambulação errónea do universo, o falhanço da espécie humana... Onde é que nós já vimos isto antes? Exacto, nas comédias de Woody Allen dos anos 70. Dá ideia de que Woody se predatoriza a si próprio. Para que não lhe venham uns alienígenas, como em Stardust Memories, dizer-lhe, «os seus filmes antigos é que eram engraçados». Mas há algo de datado, de anacrónico, quer se queira não. A Nova Iorque deste filme filme já não é a Nova Iorque dos pós-11 de Setembro. E na verdade, apesar de alguns pequeníssimos acertos, este era um guião que jazia na gaveta há 30 décadas, e que supostamente era para ter o actor Zero Mostel (que entretanto morreu) no principal papel. Mas o absurdo e a imponderabilidade dos encontros nunca perde actualidade. Mesmo que todas as regras de um universo sem Deus conspirem em sentido contrário, tudo pode dar certo. Basta deixar-nos ir, guiados pelo acaso, conquistado pelo niihlismo derrotista de alguém que - continua a dirigir-se para a plateia- nos acha mesmo desprezíveis. Bem melhor que umas massagens aos pés.
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