segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Os apanhadores de real

DOCLisboa 2007

Do cinema independente e underground aos grandes monumentos do documentário. Do neutro ao politicamente empenhado: Alguns documentários portugueses no DOCLisboa 2007.

& Etc, de Cláudia Clemente
Do seu atelier de arquitectura, no Chiado, Cláudia via-os chegar. Singulares personagens, fora deste tempo, fora deste mundo. Iam e vinham, a horas desencontradas, alienígenas da cultura, pertenciam a outro planeta, uma cave penumbrenta, povoada de livros, ácaros, teias de aranha, garrafas de plástico vazias e gatos pequeninos. Neste seu inaugural documentário, Cláudia Clemente, uma ex-arquitecta que também já foi escritora, teve a confirmação: por vezes, não são precisas viagens de anos luz e astronómicos orçamentos para aterrar noutras galáxias. Neste caso, na & Etc, fundada em 1973, a editora dos livros quadrados, de Victor Silva Tavares e Rui Caeiro, para quem a venda de 20 exemplares é um sucesso editorial e o saldo negativo no banco um «prejuízo sustentado». Para falar com franqueza não é uma verdadeira editora, mas «uma aventura poética». Ou isto é que ser uma «verdadeira editora»? Uma aldeia de Ásterix, barricada pela poesia, pelas vanguardas, pelas sobrevivências anarco-culturais, sem se deixar invadir pelas lógicas mercantis dominantes. A única diferença é que estes irredutíveis gauleses nem medo têm que o céu lhes cai em cima da cabeça – já lhes aconteceu tantas vezes. Conta Vítor: «Às vezes, quando tenho de mandar caixotes de livros não vendidos para a guilhotina, sinto que estou a cortar um dedo, um pedaço de pulmão... Mas no meio de tanta desgraça até nos dá vontade de rir». Mesmo com a estrutura e a ingenuidade de principiante, Cláudia captou ao longo de um ano e de 16 horas de filmagens o espírito desta editora – chamemos-lhe antes ilha ou ilhota. Fê-lo no âmbito de um curso de realização na Restart. Já ganhou um prémio no Imago e teve o «privilégio» de ter sido seleccionada para a competição nacional do DOC Lisboa (foram escolhidos 20 num universo de 80). Agora está a realizar um vídeo-clip e a escrever a sua primeira longa de ficção. «Sou uma náufraga, uma aprendiz de feiticeira, espero um dia dizer que sou realizadora». Ficam as últimas palavras do documentário. Um poema de Adília Lopes, dito por ela própria: «Para que servem poetas em tempos de penúria?/Para que servem tempos de penúria?».

Adeus, Até Amanhã, de António Escudeiro

E um dia ao angolano António Escudeiro disseram: «Vai-te embora!». Corria o ano de 1975, trabalhava com imagem, para o governo de transição do MPLA. «Vai-te embora mas não amanhã, vai hoje, agora!». A 16 de Setembro, sem malas, sem resgatar o depósito bancário, só com a t-shirt e os calções que trazia vestidos, o realizador, fotógrafo e director de fotografia aterrou noutros horizontes (exíguos), noutras temperaturas (amenas), noutro continente (branco), noutro mundo (também amotinado). Há trinta e dois anos, António Escudeiro disse «Adeus». Hoje diz apenas «Até Amanhã». Um documentário on the road, quatro mil quilómetros em 25 dias, de Angola, ao Lobito, Huambo, Huíla... Um roteiro sentimental, sem nostalgias estéreis, nem saudosismos serôdios. Em que cada plano, captado quase sempre com tripé, tem a força de uma fotografia, de enquadramentos avaliados, e pontos de fuga e luz calculados ao pormenor. Escudeiro percorre aquela geografia que sempre considerou tão sua, desde o nascimento, infância, adolescência e idade adulta: «Sou angolano, sempre fui. Nunca me considerei outra coisa». E desce (ou seria melhor dizer, sobe) àquele «estranho paraíso». Entra nas suas velhas casas de infância, hoje pele e osso, descarnadas daquilo que foram. Passa por fachadas cravejadas de balas. Atravessa cidades fantasmas, onde os governantes vestem Armani, e o povo ainda agora renasce, na pujança dos mercados, cinco anos passados da guerra. Tira sangue («um gesto simbólico») no velho e desertificado hospital – para depois se cruzar com a enfermeira, por acaso, na rua, que o alerta para os valores baixos de hemoglobina. Viaja nos obsoletos comboios, que de vagões de mercadorias se fizeram carruagens de passageiros. Demora dois dias nas crateras lunares do alcatrão, quando dantes o percorria em meia dezena de horas. Passa por colunas de 40 atascados e resignados camiões. Percebe em Luanda que as maiores inseguranças são os seguranças, as extorsões e «o dinheiro para a gasoza». No Huambo, detém-se no arruinado cinema Ruacaná, corroído por dentro como uma cárie dentária. Senta-se na plateia, espectador de coisa nenhuma. Era ali que haveria de começar o filme. Assim foi. «Este filme é um olhar, apenas isso, não foco o lado subjectivo, não critico nem elogio. Deixo que quem vê pense por si». E apesar de ter ficado «chocantemente sensibilizado com o acolhimento das pessoas», Escudeiro nunca se deixa contagiar pela emoção, e mantém uma notável e rara equidistância nos comentários em off, «mas lá que foi muito comovente foi»: «Este não é um filme sobre mim, é um filme a partir de mim». E sobre o recado subliminar contido nas palavras de Ondjaki: «Quantas noites são precisas para fazer uma madrugada em Angola?»

É preciso fazer as coisas, de Margarida Cardoso
Este não é um documentário de making of de uma peça teatral. Este não é um documentário sobre o Tio Vânia, de Tchecov. Este não é um documentário sobre a companhia do Teatro Carlos Alberto, no Porto. Este não é um documentário sobre uma encenação de Nuno Carinhas. Este não é um documentário sobre um processo criativo colectivo em curso. Este não é um documentário sobre a estrita realidade. Este não é um documentário integralmente ficcionado. É Preciso fazer as Coisas é um daqueles documentários em que se torna mais fácil começar por dizer o que ele não é. Um objecto híbrido, não identificado, um documentário mutante. «O filme começa na minha difícil relação com o teatro. Tornou-se num filme muito intrincado, que não tem tempo nem espaço, que transforma o real numa ficção», explica Margarida Cardoso, autora de filmes como A Costa dos Murmúrios (...) ou O Natal de 71- 2000). «É uma espécie de viagem terapêutica para mim. De tentar compreender aquela forma de os actores trabalharem. O teatro tem demasiada verdade, ou vida, com a qual não consigo lidar muito bem», continua. Esteve sempre presente, ela e a câmara, da fase exploratória do texto de Tchekov, aos ensaios e à introspecção das personagens. Filmou à vontade, sem nenhuma intenção específica. E de cerca de 90 horas de filmagem fez 52 minutos, variações em torno das frustrações tchecovianas, e daquilo que se tem de fazer, mas que nunca se faz, por falta de tempo ou de idade. A sua presença deixou de ser intrusa, a sua câmara de intimidar. Também ela já fazia parte daquele processo. Invizibilizou-se. Captou exteriores e interiores, os pensamentos dos actores, para além do palco, para além das personagens, nesse mundo onde o tempo pára e o mundo flutua. Afinal, diz-nos, «o teatro é isso».

Jardim, de João Vladimiro
Tudo o que pode caber nos quatro hectares de jardim da Fundação Calouste Gulbenkian. Tudo mas mesmo tudo, como uma conversa que se prolonga e o assunto se esgota até à última sílaba. Foi assim, conta João Vladimiro, actor, bailarino e agora também realizador, «um diálogo com o jardim», todos os sentidos bem despertos durante um ano inteiro, 50 horas de filmagem, até captar as floras e faunas (até as humanas), o que está à vista, os bastidores, as ondulações das estações, «todos os estados de espírito» que aquele espaço arquitectado por Gonçalo Ribeiro Telles evoca. Os ramos, as folhas, os galhos despidos, os lagos, as pedras, as estátuas, os patos, as pessoas que contemplam, que relaxam, que namoram, que fazem Tai-chi, as crianças que brincam, o ucraniano que pesca peixes para a refeição, a mulher que procura Eusebiozinho, o gato, no cimo de uma árvore, os jardineiros, as obras, os comentários de Ribeiro Telles... O documentário foi uma encomenda da Fundação a João Vladimiro que frequentara um curso de realização na instituição e já ganhara um prémio no Indie 2006, com Pé na Terra, um filme sobre as hortas lisboetas, entre Chelas e as Olaias. Dissecou o jardim, palmo a palmo, mas não se fartou – o jardim não cansa, é um labirinto de Minotauro, como frisa Ribeiro Teles no filme. Como método usou a poesia («li imensa poesia durante a rodagem») e a observação, às vezes quase voiyeurista, mas garante nunca se escondeu atrás de nenhum arbusto ou deixou de pedir autorizações. Depois foi só ir saciando metodicamente todas as curiosidades que um jardim pode despertar. «Apercebi-me que as pessoas que o frequentam dialogam com ele. Têm conversas mentais O Jardim tem mutações, tem uma respiração, como se fosse um ser vivo», continua João que no documentário usa sempre a câmara à mão, para melhor captar o instante e fez uma montagem sem qualquer lógica narrativa, «apenas respeitando a passagem das estações». Sem voz off, com uma banda sonora quase neutra, sem discurso, «pelo menos não impositivo ainda menos descritivo», para deixar «espaço às pessoas de fazerem o filme dentro da sua cabeça.

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