segunda-feira, 16 de novembro de 2009

A arte de Pedro Costa

Ne Change Rien






Há quem faça filmes, Pedro Costa constrói obras de arte. Parte do real para chegar ao sublime. E a sua obra cinematográfica, válida por si só, tem a dignidade de peça de museu. Não é por acaso que o seu trabalho foi objecto de uma retrospectiva na Tate Gallery e tem feito uma espécie de digressão pelos museus. Efectivamente, Pedro Costa vai além do cinema, explora a sétima arte como a súmula das seis primeiras. Cada frame de Ne Change Rien poderia ser emoldurado. Há uma precisão estética absoluta sem margem para descuidos. Jeanne Balibar sai daqui deificada. Mas não é por ela que este filme se guardará nas estantes vivas da memoria do cinema, é por quem a olha, por quem a mostra.

Pedro Costa apaixonou-se e deixou-se seduzir pelos encantos sombrios da cantora. Mas ao revelar a sua paixão, faz de nós cúmplices sem retorno, nem qualquer remédio se não deixar-nos encantar pelo retrato em quadros hipnótico. É hipnótico o efeito, não só pela quietude da imagem, mas pela ideia de repetição. Se em Onde Jaz o teu Sorriso, Pedro Costa exibira o detalhe, a paciência inerente à arte, que consiste na inevitabilidade da minúcia da busca do pormenor exacto, no repete repete do trabalho dos cineastas Danièle Huillet e Jean-Marie Straub; aqui encontra o mesmo universo minucioso aplicado à música. Uma exigência estética, com a qual se sente seguramente identificado, em busca de uma perfeição, que não será necessariamente límpida. Interessa-lhe mais exibir a tentativa e o erro do que o final feliz.

Enquanto desvenda a sua personagem, que não precisa de muito mais do que cantar e ensaiar para se dar a conhecer, Pedro Costa apura as suas concepções estéticas, nos habituais tons soturnos, em jogos de sombras de um cuidado meticuloso. A soturnidade está mais no olhar de Pedro Costa do que em Jeanne Balibar.

Descobre-se assim perfeito o encontro entre música e cinema, numa montagem discreta, na criação de uma atmosfera de luzes (através da ausência de focos), de uma artificialidade realista, que permite que a sua percepção domine sobre a realidade. E, para nós, não há nada tão real como a percepção que temos do outro.

Para quem conhece o seu percurso, não surpreende assim tanto esta nova Vanda, pela qual Costa se apaixona. O realizador é extremamente musical. Já em O Sangue convidara Manuel João Vieira para um papel importante, e usara, sem chegar à parte cantada, This is The Day, dos The The. Aqui os encantos são mais do que óbvios. Balibar é uma cantora de uma versatilidade espantosa, com um timbre justo e uma capacidade de expressão arrebatadora. Tanto interpreta Offenbach como Peggy Lee. E o seu rosto enche de emoções o ecrã, mesmo quando o realizador opta por o deixar meio fechado na sombra. Literalmente, repetem-se palavras ditas no filme: «Se ao menos pudesse beijar-te, valia a pena a espera». E a música encontra-nos como um beijo que sobressai da escuridão.

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