quinta-feira, 26 de abril de 2007

Águas futuras

Natureza Morta, de Jia Zhang-ke



E soam toques polifónicos de telemóvel, enquanto na mesa do restaurante ao lado, almoçam figuras trajadas à teatro tradicional chinês.


No filme Natureza Morta, de Jia Zhang-ke, nunca se está: transita-se. Entre o esteve e o estará. Começa com uma travessia de barco. Acaba com uma travessia – algo alucinatória – de uma figura, no arame, entre dois prédios. Conhece-se o passado, pressente-se o futuro, só o presente é indistinto. Não é um, nem outro – é «qualquer coisa de intermédio». Como num barco, está-se fora de água, mas dentro dela. Como no arame, está-se no ar, mas de pés assentes.

Este filme independente, do cineasta outsider do sistema oficial de produção cinematográfica na China, venceu o Leão de Ouro para o Melhor Filme no Festival de Veneza de 2006. As personagens encontram-se num ponto instável, flutuante, movediço, indefinido. Estão em suspensão. Uma ficção num pano de fundo real: a construção do projecto hídrico das Três Gargantas, sobre o rio Yangtze. Uma mega-barragem no rio mais comprido da Ásia (6300 quilómetros), planeada desde os tempos pré-Mao, e acalentada pessoalmente pelo próprio. E que se tornará no maior gerador de electricidade do mundo, à data da sua conclusão, em 2009.

Esta nova muralha da China em meio aquático obrigará à deslocação de um milhão de pessoas, e submergirá aldeias e toda uma cidade com dois mil anos de história: Fengjie. E é aqui, neste não lugar, nesta zona que ainda não é das águas, mas já não é das terras, que Jia Zhang-Ke põe duas personagens em expedições amorosas paralelas. Um mineiro, taciturno e aldeão, chega à procura da mulher que lhe fugiu há 17 anos. Uma enfermeira procura o marido que não vem a casa há dois. A câmara segue-os nesta errância por uma terra de ninguém, por entre escombros, estaleiros e entulho. Por entre prédios com quota de água já marcada lá no alto, à beira de um naufrágio anunciado. Por isso, eles estão neste limbo, entre cá e lá, entre a ruptura e a reconciliação, entre aquilo que se salva e se deixa para trás, entre o que se condena à vida e à morte, entre o enxuto e o inundado, entre a destruição e a construção, entre o comunismo e o capitalismo, entre o estado sólido e o líquido... Entre aquilo que já foi, mas ainda não é o que será.

Como essas naturezas já mortas, porque amputadas de raízes, mas que ainda conservam a memória da vida que foram.

É um filme com humidade. A invasão das águas adivinha-se nas peles suadas e escorregadias. Infiltra-se pela tela.

Depois há o sentimentalismo descartável, que se infiltra também, através das canções de amor entoadas por um miúdo, junto das equipas de demolição ou num barco. E até elas trazem em si a sua própria contradição: «Amo-te como um rato gosta de arroz...». Tão (in)descartável como esses sacos xadrez, desses da loja dos trezentos, que estão por todo o lado. No filme e em todos os bairros do mundo. E soam toques polifónicos de telemóveis, enquanto na mesa do restaurante ao lado, almoçam figuras trajadas à teatro tradicional chinês. Limitam-se a estar lá, a fazer conviver paradoxos, com um passado alagado, com um futuro desidratado - falta-lhes apenas um presente...

Com um pé no documental, Jia Zhang-Ke constrói esta ficção minimalista, despojada, com poucos diálogos, numa narrativa plana e sem acidentes. A não ser essas pequenas rupturas do real, em que o realizador transgride a gramática de género, em rápidos parêntesis de ficção científica. Como o escalavrado prédio que, subitamente, levanta voo, em jeito de nave espacial.
Interessante será a possibilidade de ver Natureza Morta, na mesma altura em que passa no Indie Lisboa, o documentário Dong que o realizador rodou em 2005, em Fengjie, justamente na região das Três Gargantas (que até vem nas notas de yuans), e que serve de cenário real ao filme.

Sem comentários: