quinta-feira, 24 de maio de 2007

Só para saber

Zodiac, de David Fincher


Os espectadores até gostam de cair em buracos negros. Desde que seja para sair deles, antes dos créditos finais.



Havia um pregão de um programa de rádio brasileiro que dizia: «Si num tem notícia... nóis inventa!». E o que tem esta obscura e tropical expressão, tão pouco dotada de escrúpulos e de sentido ortográfico, a ver com o novo filme de David Fincher, Zodiac? Nada. Ou melhor, tudo. E não se tome os antónimos por paradoxo, ou por qualquer tipo de vacilação ou de hesitação de análise. Porque mais do que saber o «tudo» que o Zodiac traz, importa ver o «nada» que ele também traz... E talvez o «nada» seja mais pródigo em pistas – não daquelas que buscam os detectives dos filmes no rasto do serial killer, mas daquelas que devem buscar os espectadores para descobrir por que razão, afinal, o tão aguardado Zodiac, do tão venerado Fincher, não correspondeu à legitima expectativa criada.

E porque não convence, desta vez, o autor do terceiro Alien (1992), o mais humanizado e ambíguo de todos, do barroco Seven (1995), de que não gostei, do mainstream O Jogo (1997), do provocador Clube de Combate (1998), do claustrofóbico e asfixiante Sala de Pânico (2002)...? Não só não convence: até desilude, até desencanta, até aborrece.

Primeiro o «tudo» que o filme tem. Tem a noção exacta da manipulação de todos os ingredientes narrativos que conseguem inculcar a tensão no espectador: o ritmo, a fluência da história, a atmosfera opressiva... E que nos deixam naquele estado ocular não pestanejante, durante a primeira parte do filme. Tem o rigor quase milimétrico do guião. Tem o virtuosismo da realização e da montagem. Tem personagens de três dimensões, das de carne e osso. Tem pormenores e detalhes meticulosos. Tem uma reconstituição de época e de ambientes muito convincente. Tem sequências espantosas, daquelas que são de imediato resgatadas para secção de memórias cinematográficas a reter. Como a cena do homicídio inicial, com as futuras vítimas a ficarem iluminadas pelos faróis do carro do assassino, que se faz anunciar pela música do auto-rádio. Ficam ali, dentro do carro, debaixo do foco, paralisadas com o fascínio do encadeamento, como os animais na estrada prestes a serem atropelados – e, no entanto, estacam. Ou como o plano picado do yellow cab, que quase resplandece de luminosidade na negrura do asfalto, e em fundo sonoro, o descarrilamento habitual dos comentários nos talk-shows de rádio.

Depois o «nada» que parece tanto – e que o filme também tem.

Afinal, o que acontece neste thriller negro, neste épico de investigação policial, sobre o caso verídico de um serial killer que assombrou a Califórnia nos anos 70 e que nunca foi apanhado? Nada, arrisca-se. É a sensação que nos fica ao fim de duas horas e meia de filme: não se passou nada!!!

E depois da vertiginosa parte inicial de Zodiac, o espectador cai no mesmo grau de desorientação dos polícias. Numa espécie de buraco negro: e os espectadores até gostam de lá cair, só para depois voltarem a sair... Não para permanecerem lá dentro até aos créditos finais.

Fincher optou por uma narrativa linear, disciplinadamente cronológica, sem sobressaltos intercalares, nem flashbacks. E com elipses sequenciais, o que só acentua um registo enxuto, quase documental. O filme começa em 69, e acaba 25 anos depois. E o avanço do tempo é dado em progressão inversa do comprimento das patilhas. Há um jornalista alcoólico, um bocado redundante (Robert Downey Jr.), um polícia que está sempre a comer bolachinhas (Mark Ruffalo), e um ilustrador que não fuma, não diz palavrões e só gosta de bebidas azuis (Jake Gyllenhaal, com o seu olhar abismado de sempre). É ele quem tenta segurar as pontas do filme, quando a investigação policial e os próprios espectadores começam a desmobilizar e a desinteressar-se da identidade do assassino. Tarde demais... Por essa altura, já andamos cansados de andar em círculos, e de avançar para lado nenhum. Jake fica só, com a sua obsessão, um bocado pleonástica. Ele quer saber – só mesmo para saber.

E terá sido o rigor, o perfeccionismo de Fincher e o seu escrupuloso apego à realidade que comprometeram a empatia com o público. No fundo, a sua renúncia obstinada à efabulação do caso real. O que coloca até em risco a nossa própria identificação com as causas da personagem, a busca obsessiva pelo deslindar dos criptogramas e dos crimes. Como naquela famosa frase de Fernando Pessoa: «A literatura é a maior prova de que a vida não chega». A realidade, as suas trapalhadas processuais, as desorientações da fase do inquérito, os avanços e recuos da investigação, as incompetências que emperram as soluções, as inépcias, a proverbial inabilidade policial, as disputas de jurisdição, as burocracias, as papeladas, as desarticulações, a falta de notícias, os casos que ficam em aberto e nunca são resolvidos – tudo isto é demasiado... real. E logo, não chega.

E fica aquela sensação frustrante e incompleta de alguém que fez o check in num hotel mas não chega nunca a conseguir fazer o check out. O assassino nunca é descoberto, nunca é preso, porque isso aconteceu na vida real. Porque essas são as regras da realidade: a inconsequência, a incoerência, a dissonância, a contradição, o mistério, a ausência de sentido, o «cá se fazem e nunca se pagam», a injustiça, o caos... Na ficção impera a regra da causalidade. Ou seja, se é mostrada uma arma dentro de uma gaveta, ela é para ser usada mais adiante. E na primeira parte de Zodiac são semeados uma série de set-ups que não têm os respectivos pay-offs na segunda. Ficam as pontas soltas, desapegadas, caricatamente pendentes. Si num tem notícia, nóis inventa. Mas Fincher num inventou...

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