quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Isto anda tudo ligado

Fay Grim, de Hal Hartley



Fay Grim, o novo filme de Hal Halterley. Para que precisamos de extra-terrestres se temos terrestres tão extra...



Para que precisamos de extra-terrestres se temos terrestres tão extra... É mais ou menos isto que se fica a pensar depois de ver Fay Grim, o novo filme de Hal Hartley. Ou talvez só algumas pessoas pensem isto, outras não. Ou talvez não se pense rigorosamente em nada. O mundo de Hal Hartley não pertence a uma galáxia muito muito distante. O mundo de Hal Hartley até pode fazer parte do nosso sistema solar, só que órbita numa zona remota, de trajectórias elípticas e mal iluminadas. Longe das estrelas, dos astros e do firmamento hollywoodiano, portanto. Hal Hartley é um dos nomes de referência do cinema independente americano, aquele que raramente chega às salas, a não ser em época de festivais.


E este CSI, Cinema Simplesmente Independente, é quase um género, um contentor onde cabem todos os filmes que partilham a estética do baixo orçamento e a ética da não cedência. Se muitos cineastas se tornam «dependentes» assim que crescem e conquistam a sua independência financeira, outros permanecem ancorados nas premissas dessa declaração de independência. Hartley manteve-se barricado dentro das suas fronteiras. Apesar da sua já vasta filmografia e do relativo sucesso – na Europa, claro: este é mais um dos americanos mais europeus do mundo.
Fay Grim é uma sequela de Henry Fool, um filme que recebeu em Cannes a Palma para Melhor Argumento. Quase dez anos depois, as mesmas figuras – mas um «independentismo» muito diferente. Henry Fool era um filme de personagens, de diálogos à queima-roupa, de soluções de argumento desconcertantes. Em Fay Grim, Hartley (realizador, argumentista, produtor e até autor da banda sonora) dá-se ao luxo de passear essas mesmas pessoas (envelhecidas por dez anos) através de vários décors do planeta: Nova Iorque, Paris, Istambul. Henry Fool conta a história de um homem do lixo (Simon) que se torna poeta nobelizado e de um homem de luxo (Henry) que se torna do lixo. Como uns fios do destino que se enredam e que se voltam a descruzar no final do filme. E ainda há uma mulher, Fay Grim, irmã do primeiro e que casa com o segundo, que funciona um bocado como a aranha desta teia onde Henry fica grudado. Só não lhe come a cabeça.

Em Fay Grim, fica-se com a sensação de que o realizador pegou nas suas figuras e sacudiu-as para cima de uma teia. Que não tem nada a ver com a trama das vizinhanças, bares e vidas urbano-depressivas do filme inicial. Elas vão cair literalmente noutro filme, num emaranhado intrincadíssimo de histórias de espionagem, terrorismo, conspirações internacionais, polícias secretas, perseguições da CIA, traições, fugas, tiros, seduções e mortes. E tão irresolúveis os nós górdios desta trama de «isto-anda-tudo-ligado», que só mesmo cortando – ou seja desligando. O que não é propriamente desconsiderante para o filme. Esta labiríntica teoria de conspiração à escala planetária, que envolve espiões americanos, chineses, russos, latino-americanos, israelitas, coreanos, iranianos e até belgas e húngaros, funciona como um Mcguffin hitchcockiano: não interessa nada para a história, apenas está ali para fazer mover as personagens. E estas no filme de Hartley movem-se imenso, de uma forma hiperactiva e até um bocado fatigante. O universo Halterliano continua lá, embora mais diluído – os diálogos rápidos, cheios de humor e de tiradas filosóficas, as falas que às vezes se repetem como um refrão de uma canção, as sentenças proferidas pelos actores naquele tom impassível (e provocatório) de poker-face. Se calhar não foi o realizador que mudou, fica-se a pensar, foi o mundo, pós-11 de Setembro, onde as personagens desafortunadamente caíram, que já não é o mesmo.


Tornou-se desconfortável, pendente, tombado, oblíquo como os planos que Hartley usa desde o genérico até ao fim do filme. Os planos são todos, mas mesmo todos, esquinados – artifício que o realizador só havia usado em Henry Fool apenas durante uma cena. Aqui, durante mais de duas horas, ficamos com a escorregadia sensação de que as pessoas e todo o décor vai deslizar a cada instante por um dos cantos do ecrã. Era uma técnica antiga dos filmes negros e de terror de série B. O plano inclinado descontextualiza o local, desfamiliariza o mundo, dá-lhe ressonâncias alucinatórias. E reconhecíveis: este é o nosso mundo, o de agora. Suficientemente extra para figurar num filme, também ele muito extra-mainstream. Para quê procurar outro?
Fay (Parker Posey) é uma mulher que vai atrás do fugitivo ex-marido, Henry. Dentro de uma geringonça erótica – pela qual todos, menos os espectadores, espreitam – vem a tagline importada do primeiro filme: «Um homem honesto está sempre em apuros». Também há uma fábula tipo Xerezade versão masculina, um homem que seduz o harém do sultão e que protela a sua morte, deixando sempre para o dia seguinte a confissão do seu pecado mais prometedor. Fay é abordada por um agente da CIA, o famoso actor Jeff Goldblum, cujo o olhar basta para dar a qualquer filme um tom inquietante. A primeiro muito ingénua Fay (e depois muito ao estilo Mata-Haria de casaco comprido e luvas sem dedos ) vai coleccionando os diários do ex-marido e apaixonados em linha de série (quase todos se apaixonam por ela, ou seja caiem na sua teia). Henry, o ex-marido, anda há sete anos exilado neste mundo de paranóia global. Como um Ulisses transviado sem conseguir chegar a casa. Nunca se percebe se Henry deseja, na verdade, ser encontrado pela ex-mulher. Nunca se percebe se Ulisses deseja na verdade voltar ao seu casamento e a Penélope, ou se arranja mil aventuras, mil expedientes dilatórios para protelar o seu regresso. «Um homem honesto mete-se sempre em apuros».

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