quarta-feira, 3 de junho de 2009

Shakespeare de chuteiras

Star Crossed - Amor em Jogo, de Mark Heller








A fórmula Romeu e Julieta é tão universal que já atravessou tempos e tempestades e foi sujeita aos mais duros testes. Passa agora por mais uma surpreendente e inusitada prova, das mais árduas que se podem imaginar, no filme de Mark Heller – A vida em Jogo, uma co-produção luso-britânica, bilingue e rodada na cidade do Porto.
O ponto de partida exigido é dois clãs, duas famílias, visceralmente antagónicas. Poderiam ser partidos políticos, oponentes religiosos , famílias rivais de peixeiros do Mercado do Bolhão ou comunidades piscatórias de Cachinas e da Póvoa. Mas escolheram o futebol, claro que sim, não o argumentista, mas os produtores. Porque nenhum outro fenómeno provoca paixões, ódios e amores, de forma tão gratuita, animalesca e irracional. Além disso, se o futebol movimenta milhões, um filme sobre futebol potencialmente também o fará.
Todavia, perante a realidade que conhecemos (não falo das ligas da Colômbia ou do Burkina-Faso) seria um absurdo elevar a paixão a tal limite: não se imagina um adepto do Sporting a impedir o casamento da sua filha com um benfiquista, só por este não ser do seu clube («Com um reles lampião, jamais!»).
Assim, para se libertar do imbróglio, o argumentista resolveu a situação criando duas equipas imaginárias num mundo imaginário, em que os jogadores são os próprios hooligans. É-nos pedido, logo à partida, um elevado grau de abstracção: faz de conta que o Porto não é o Porto, que o Estádio do Dragão não é o Estádio do Dragão, que as equipas daquela cidade se chamam Invicta e Castelo, que os jogadores de futebol sabem todos falar inglês, que uma das equipas é maioritariamente inglesa... Quem não conseguir ultrapassar todas estas premissas fica bloqueado logo nas primeiras cenas. Quem tiver essa capacidade de se abstrair só se deixa bloquear mais à frente.
As melhores cenas do filme são as filmagens dos próprios jogos (apenas duas, uma no estádio outra na rua), com um ritmo frenético. Apresentam-nos um campo de batalha. Não se trata certamente de nenhuma partida como estamos habituados a ver. A violência é tal que o Paulinho Santos pareceria uma donzela ao pé daqueles brutamontes. Aproxima-se mais de um jogo de Futebol Americano, sem capacetes. Ou mesmo da pancrácia – modalidade das Olimpíadas Gregas em que, literalmente, valia tudo menos arrancar olhos. A cena serve para nos localizar num ambiente de ódio brutal, dando ênfase à oposição entre os grupos.
Essa oposição não se dá de forma tão drástica a nível das claques, que quase não se vêem, mas sim a nível dos próprios jogadores, que se odeiam visceralmente e agridem-se a pretexto de nada. A partir daqui nota-se um esforço quase meticuloso de seguir a obra de Shakespeare (recontextualizada) ponto por ponto. É um grande desafia para o argumentista: transpô-la para um universo assim tão bizarro. E esse é o maior mérito do filme, essa fidelidade relativamente rigorosa (a varanda é substituída por um camarote do Dragão).
A paixão entre a filha do presidente da Invicta e de um jogador inglês do Castelo é um amor impossível, com obstáculos intransponíveis, que acaba, inevitavelmente, em tragédia, tal qual o dramaturgo inglês a desenhou. O pior de tudo é o mau gosto do realizador: que envolve uma panóplia de clichés, sobretudo de realização e fotografia, optando pelas mais telenovelísticas técnicas, de campo contra-campo, com direito mesmo a amor à fogueira ou a flores que se entrelaçam no ar. O exacto oposto à obra valorosa de Mário Barroso que, apesar das dificuldades temporais, soube reler como história adolescente contemporânea o Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.
Neste Romeu e Julieta da bola o pontapé de saída, por si só, já era muito difícil: o contexto futebolístico, e o bilinguismo exigido pela co-produção. O realizador transforma-o num objecto insuportável. Não há Shakespeare que resista.

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