sexta-feira, 11 de abril de 2008

Ensaio sobre a cegueira

The Mist – Nevoeiro Misterioso, de Frank Duramont


Também era branca a cegueira de Saramago. Como um lençol branco que de repente começava a cobrir as retinas de toda a gente. Não do escuro, mas do claro é que emergiam os mais medonhos e grotescos demónios. Como em The Mist, de Frank Duramont (stephenkinguiano realizador): uma névoa láctea envolve e cega os humanos. E a cegueira é como o sono da razão – gera monstros. Que por mais temíveis, aberrantes, bi-céfalos, viscosos, gangrenosos, tentaculares e insaciáveis – são melhor enfrentáveis do que aqueles com duas pernas, dois braços, um polegar oponível e uma cabeça supostamente Sapiens.

Pelo menos, é isto que pensa uma dúzia de personagens de uma pequena localidade em Maine, quando se vê encurralada por um nevoeiro povoado de aberrações demoníacas. Antes extra do que terrestres. Ainda que dotados de apetite voraz. Por isso, elas abandonam o supermercado onde se tinham barricado, juntamente com um grupo de humanos sobreviventes. Humanos sim, mas já contaminados pela cegueira, a de Saramago. A da irracionalidade e do obscurantismo. Sendo que, aqui no filme, do lado dos humanos, outro assombro se anuncia: a do fundamentalismo cristão.

E então, como em todos os bons filmes de terror, os fantasmas não se vêem – pressentem-se. E eles andam por ali, a rondar, na primeira hora de filme, nessa invisibilidade construída de tensão. O realizador não corre, quando pode andar, a percorrer as etapas do suspense. Pequenos indícios, um vento furioso, uma tempestade inusual, uma neblina a insinuar-se. Duramont deixa o suspense infiltrar-se, até impregnar o ar, até o tornar compacto. Como acontece em todos os filmes de terror, bons ou maus, a primeira coisa a acontecer é o corte total das comunicações. Incomunicáveis, as personagens de The Mist acorrem a precaver-se contra futuras tempestades, e vão ao supermercado abastecer-se de provisões. É aqui que se entrincheiram (fica, desde logo, resolvido o problema básico de alimentação dos sitiados), quando o nevoeiro os cerca, fica circunscrito o micro-cosmos que há-de revelar figuras-tipo e as personalidades mais sombrias. Sobretudo uma pregadora do apocalipse, uma fanática religiosa, a apontar culpas e a exigir sacrifícios. E enquanto uns perdem a razão, há um retalho civilizacional que se amputa destes dois mil anos de história cristã.

Nuvens brancas lá fora, cá dentro estão as negras. Há que escolher. Num registo sempre contido, sem resvalar para o mau gosto (mas também sem nenhuns acessos de genialidade), às vezes com uma notável sobriedade narrativa, às vezes a ficar a pairar naquela sensação de que podia ser melhor, o filme vai evocando os Pássaros, nalgumas cenas de alta concentração de monstros alados. Ou O Tubarão, quando um corpo meio devorado se «pesca» das brumas. A cena final... A cena final tem um tom mais pós- holocaustico. Reprime-se o mal, domina-se a besta, é certo, mas há qualquer coisa que se perde. Irremediavelmente.

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