segunda-feira, 12 de maio de 2008

(In)correspondências

Cartas a Uma Ditadura, Inês de Medeiros.




Onde é que esta gente andava no 25 de Abril? A pergunta à Baptista Bastos não é sequer provocadora, se aplicada às protagonistas do filme de Inês de Medeiros, Cartas a Uma Ditadura (Prémio de Distribuição do DocLisboa 2006). É uma pergunta redundante, o que não quer dizer desnecessária. Há muito para perguntar a este nosso carunchoso passado recente. Esta gente, estas senhoras, donas de casa, fadas do lar, costureiras, beatas, «irmãs, esposas, filhas dos portugueses» andavam aí a conviver jovialmente com a pobreza dos outros (e a delas próprias, embora algumas nem disso soubessem). E a assegurar, na parte que lhes tocava, que se mantinha «cada um no seu lugar». A mulher em casa, os pobrezinhos de mão estendida e Salazar a dedicar-se às suas contas. «Por Deus, pela Pátria, pela Família, avante!» O totalitarismo precisa destas pequenas instâncias de medo, constrangimento e vigilância, que penetravam nas mentalidades, como as infiltrações nas paredes. O documentário de Inês é sobre isto: infiltrações antigas nas casas portuguesas, com certeza, que podem já não deixar rastros negros e bolorentos mas que talvez expliquem algumas baforadas de bafio que, volta e meia, se fazem sentir.

Mundo-em-direita
A realizadora diz que foram encontradas, por acaso num alfarrabista «uma centena de cartas, escritas exclusivamente por mulheres em 1958». Claro que a circunstância soa a expediente literário, mas, seja como for, a realizadora, com recurso a material de arquivo inédito, conseguiu iluminar um lado pouco ou nada explorado pelos historiadores. 1958, ano do «satânico vendaval», e do obviamente demito-o de Humberto Delgado. O General candidata-se às presidenciais, e faz estremecer o pântano. Um depósito de entusiasmo vem ao de cima. O regime põe em campo as suas sentinelas do lar, uma circular de um misterioso Movimento Nacional de Mulheres, criado expressamente nessa ocasião, envia uma circular às portuguesas. O espólio compreende justamente as respostas a essa circular, cartas de quase amor a Salazar, aquele que nos traçou «um caminho atapetado de rosas sem espinhos». Passados 50 anos, Inês reencontra algumas das signatárias dessas cartas. Se num primeiro momento, face às palavras escritas e aos depoimentos, quase caímos na tentação de nos enternecermos com tantos chavões de transbordante amor ao ditador, num segundo é o medo que se lê nas entrelinhas. Muitas pedem desculpa pela indisponibilidade, justificam-se com a saúde, filhos, trabalho (ou tudo junto), para logo a seguir reafirmarem a mais que devota lealdade («tenho um S gravado no coração»). Não fosse alguma dúvida ou desconfiança pairar sobre elas. Dizem-se submissas: «Habituei-me sempre a colaborar e a obedecer de boa vontade». Dizem-se gratas: «A gratidão é a maior virtude e a liberdade é uma burla». Diziam-se operacionais: «Como nos entendemos bem com alguns homens que fazem o recenseamento, cortamos quem não nos merece confiança». Hoje dizem menos. Ou de outra maneira. «Desde que haja alguém acima de nós que nos explique o que é mau e o que é bom, o mundo endireita!»

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