quinta-feira, 8 de maio de 2008

E fez-se contra-luz

A Ronda da Noite, de Peter Greenaway






Imaginar Peter Greenaway de pincel e paleta é fácil (até porque o próprio é pintor). Imaginar Rembrandt de câmara de filmar já exige algum esforço, pelo menos o necessário para demolir as barreiras do anacronismo. E no entanto, é quase disto que se trata em ambos os casos.

No filme, Greenaway faz de cada plano uma composição pictórica, com jogos de luz e de sombra, texturas de cor e profundidades de campo, cenografias pontos e contrapontos, a mostrar que mantém aquele imenso poder de sedução estética. À Greenaway.

Num dos mais famosos quadros de Rembrandt, A Ronda da Noite, o pintor holandês repudia os estereótipos dos retratos de grupo da época: geralmente os retratados figuravam perfilados e graves como num enterro, aqui revolvem-se em movimentos, congelados num frame, pela câmara/pincel. À Rembrandt.

Peter Greenaway não explora só a estranheza (ou até indignação) que tal ousadia cinéfila terá causado no parâmetros estéticos do século XVII: os retratados sentiram-se pantomineiros de uma peça de teatro, desonrados por terem sido interceptados nas suas acções, em vez de, em solene e assumida pose, fitarem olhos nos olhos aquele que os pintava. E convoca também todas os misteriosos elementos que compõem aquela tela – desde o cão que ladra curvado como uma fera prestes a saltar, à estranha figura feminina de galinha à cinta para onde convergem os olhares, como se iluminada por um holofote, ou o ser semi-oculto que espreita por entre dois ombros – e constrói uma teoria da conspiração. A Ronda da Noite segundo Greenaway é um quadro-denúncia, através da sua atípica pintura, Rembrandt estaria a dar pistas sobre um assassinato promovido por aqueles mesmos que lhe encomendaram a obra.

Aliás, o mistério começa logo no título por que ficou conhecida a tela. Críticos posteriores chamaram-lhe Ronda da Noite, mas a escuridão revelou-se sujidade do tempo. Clareada a noite, viu-se afinal a luz do dia.

E enquanto toda uma teoria da conspiração se desvenda, sucedem-se, como quadros num museu, as cenas da vida privada de Rembrandt (Martin Freeman), suas mulheres e amantes, suas serviçais e traidoras, sua penúrias e decadência social. Ou a irradiar de luz teatral, ou num tom mais crepuscular, Greenway faz pintura com som, frame a frame, sobre a obra em que Rembrandt gritou Acção! e ... Corta!

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