quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Aquele Abraço

Abraços Desfeitos, de Pedro Almodóvar





Só Almodóvar coloria assim um melodrama negro. Em Abraços Desfeitos, o realizador abraça o cinema e as suas musas

«Dona Sangre». O apelo à doação voluntária de sangue num cartaz das ruas de Madrid assalta, de súbito, a imaginação de uma personagem do novo filme de Pedro Almodóvar (Abraços Desfeitos estreia-se hoje, dia 10). E se a Dona Sangre fosse o nome de uma mulher, uma vampira empresária que dominasse este sistema de colectas, armazenamentos e transfusões sanguíneas? Dava um filme, pensa essa personagem... Um filme de vampiros, mas de vampiros diferentes, civilizados, rendidos ao capitalismo e ao século XXI. Que não andassem para aí, em sofreguidões desenfreadas, a atacar vítimas incautas. Estes vampiros do filme dentro do filme seriam mais empreendedores, não só colectariam assepticamente o sangue dos cidadãos, como dominariam o mercado das melhores marcas de óculos escuros e dos mais infalíveis protectores solares.

O que pode parecer um momento episódico, diluído em todos aqueles abraços que se fazem e desfazem do enredo, talvez não tenha sido convocado para o 17º filme de Almodóvar por acaso.

Talvez nos últimos tempos o realizador, atormentado por misteriosas enxaquecas, tenha sentido alguma afinidade com as sanguinárias criaturas, impedidas de apanhar luz solar. Pedro Almodóvar, o homem que tem medo da luz. Ele é um realizador como fotofobia – um paradoxo para quem luz é matéria de trabalho. Tem de andar sempre de óculos escuros, protege-se com chapéus, a única coisa que pacifica as suas enxaquecas é encerrar-se dentro de um quarto na obscuridade, sem uma fresta de luz, nem aquela que emite o computador ou a televisão.

Nesses momentos, fica completamente dominado pela dor. O sofrimento impede-o de trabalhar mas não lhe anula a imaginação. Por isso, diz que este filme nasceu de uma «dor obscura». Aí nasceu o protagonista do seu filme, tal como ele, tocado pelo paradoxo, ou pela ironia sarcástica do destino: um cineasta que vive na escuridão, porque cegou.

Este realizador cego (Lluís Homar) parece ter-se adaptado à sua desventurada condição. Continua a escrever guiões, seduz as mulheres que o ajudam a atravessar a rua, os amigos e a sua fiel produtora entram-lhe jovialmente pelo seu apartamento nas alturas mais inoportunas. É assim que começa o filme, num registo solar. Quase como uma comédia almodovariana de outros tempos. Só que depois se vai obscurecendo, enegrecendo, até o melodrama sombrio se instalar. Porque este homem tem um segredo – como todas as personagens de Almodóvar. E esse segredo envolve uma mulher – como todos os guiões de Almodóvar.

Abraços Desfeitos é um filme negro. Há um doente terminal, uma mulher fatal, um amor desafortunado, um magnata poderoso, uma paternidade que se rejeita, outra que se revela, alguém que fica cego, alguém que se sacrifica por amor, alguém que se vinga, alguém que sangra... Até há alguém a rolar dramaticamente por uma escadaria, como acontecia tantas vezes, nos filmes da era dourada de Hollywood. Só que até neste mundo de «dor obscura» o realizador consegue estampar o seu carimbo technicolor. Momentos disruptivos, salpicos de humor que interrompem a mancha sombria que adensa o filme. Como aquela lembrança inventiva de escrever um guião sobre vampiros modernos, ou a de pôr uma mulher a fazer leitura labial de um vídeo indiscreto, só para o magnata saber o que sussurra a sua amante quando está com... o outro amante. Tudo isto com a mestria exemplar de um realizador, que faz avançar e recuar no tempo a narrativa, catorze anos para a frente e para trás, com uma extraordinária fluidez.

Muito muito distante da obra-prima que produziu com Fala com Ela (2002), Abraços Desfeitos pode não ser «o» grande filme, mas continua a ser «um» filme grande. Tem a grandeza de um realizador que, por menos que se esmere, nunca conseguirá diminuir-se, aquém da mediania. Além disso, o trailer do filme é maravilhoso, quase mais do que o próprio filme: uma sequência à Cinema Paraíso, de Tornattore, só que em vez de beijos acompanhados pela música de Morricone, Almodóvar alinha todos os abraços que vão sendo dados ao longo do filme.

Na carreira do realizador este é um filme de fim de ciclo, como se ele quisesse abraçar toda a sétima arte e as suas musas – corporizadas por uma camaleónica Penélope Cruz (ver caixa) É o cinema que tudo incorpora, cura e regenera. É no cinema que o amor permanece e os abraços se eternizam, como o dos amantes carbonizados pela lava de Pompeia, em Viagem a Itália, de Rosselini – cena que também comparece no filme. Almodóvar abraça o cinema. O que viu e o que fez. Estão aqui os seus velhos temas de sempre, o amor, a morte, as relações parentais não resolvidas (há uma referência explícita ao filho renegado de Arthur Miller e outra implícita ao de Ernest Hemimgway), a homosseuxalidade e as chicas, claro… Aliás, o filme dentro do filme, aquele a que o protagonista se dedica, é uma óbvia citação a Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, as mesmas cores, o mesmo décor, o mesmo gaspacho com soporíferos, e a sempre tão picassiana Rossy de Palma.

4ª colaboração com Penélope Cruz
Penélope Cruz na sua versão Audrey Hepburn ou na sua versão mais platinado à Marylin. Num look mais pop, mais chicas de Almodôvar na comédia que se roda dentro do drama, mais veraneante nas praias de Lanzarotte, ou mais executivo dentro de um tailler. Ou mais novo-rico no seu Channel cheio de correntes douradas. As mesmas que a amarram àquele empresário milionário. Ela é uma Rita Wayworth em Gilda. O amante rico, que produz um filme só para favorecer a namorada actriz é um Marlon Brando à Citizen Kane. No fundo, Almodóvar «abraça» tudo isto. Abraça os velhos temas do cinema de sempre, o amor, a vingança, a morte, as relações paternais não resolvidas... E até abraça aquilo que ele próprio inventou.

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