quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Faca na liga

          Veneno Cura, de Raquel Freire






A realizadora fez das tripas coração para rodar a sua segunda longa, uma história de amores de faca e alguidar. A faca perfura os corações destas mulheres do Porto, que têm nomes começados por «érre», e vestem vestidos de estilistas conhecidos. O alguidar ampara-lhes o sangue derramado. Não foi o amor cor-de-rosa que Raquel Freire, 35 anos, quis filmar. Preferiu o vermelho-sangue, o «verde dos vómitos da bílis», o «castanho das tripas de fora», o «vermelho-escuro das hemorragias». Veneno Cura fala, diz ela, «dos tabus da intimidade». É que, sustenta, «o cinema português é demasiado pudico». E afinal: «Somos todos galinhas degoladas aos saltos.».

O filme de Raquel Freire não é tanto sobre fogo que arde sem se ver. A ideia é mesmo ver: as facas a golpear, ali, tempos infindos, a ulcerar a pele. Não vá o espectador não captar as imensas hemorragias que resultam das perdições amorosas, sobretudo aquelas que acontecem nos esconsos de discotecas obscuras e orgíacas do Porto, ou à beira das pontes, também do Porto, numa espécie de necrose de romantismo. E rapidamente a tela transborda, a paleta torna-se de berrante, tal a overdose de simbolismo, de artificialismo, e de sofredorismo… Resultado: a ferida não dói nem se sente. Aqui fica a realizadora em primeira pessoa.


Parece que a prova de fogo, no cinema português, não é tanto o primeiro filme, mas o segundo. Depois da estreia promissora com o Rasganço, em 2000, sentiu essa pressão?
Não. Até porque não considero este o meu segundo filme. Tenho um outro em fase de montagem que rodei antes, e espero que se estreie este ano o meu documentário Esta É a Minha Cara, sobre criadores de teatro, sobre como é possível continuar a criar neste país e não desistir, apesar de tudo...


E como é possível continuar a realizar neste país e não desistir, apesar de tudo?
Trabalhando com esforço e teimosia. Este filme foi feito com uma paixão incrível. Trabalhámos com o coração nas mãos, atirámo-nos de cabeça e... ficámos com as tripas de fora...


Como as suas personagens?
Como as minhas personagens...


Consegue inserir este seu filme em algum tipo de linhagem?
Não. Mas isto não é nenhuma crítica ao cinema português. Fico feliz quando alguém consegue terminar um filme. É uma tarefa hercúlea. Isto está cada vez pior, as vidas são cada vez mais precárias, parte dos meus amigos ligados às artes emigraram para países que sabem que a cultura não é algo supérfluo. Sem imagem, um país desaparece. Se deixarmos de criar, perderemos a alma.


Porque insiste tanto na cena das galinhas degoladas?
A cena tinha mais cinco minutos. É uma situação familiar, um ritual de morte, banal, que acontece nos nossos quintais. E tem tudo a ver com o filme, sobre os tabus da intimidade, sobre aquilo que, no amor, não se quer olhar. Toda a gente come frango, mas ninguém quer ver a matança. Todos nós somos galinhas degoladas, a sangrar, mas continuamos a saltar, não desistimos.

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