quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O fado da desgraçadinha

Precious, de Lee Daniels






Anos e anos de diegese, de tratados de narratologia, de modelos ancestrais de arte de contar e convencer. E até o bom do Aristóteles havia de repetir aos seus discípulos de antes de Cristo os seus conceitos de verosimilhança da Poética: o que aconteceu mas não é verosímil não serve para o drama, ouviram?... Não serve, não dá, não vale a pena, não funciona, não resulta, desistam... E há-de haver sempre alguém que faz tábua (ar)rasa de todos os ensinamentos ancestralmente testados... Ainda que venham dos venerandos mestres de toga e sandália. Vem isto a propósito do filme Precious (estreia-se hoje), do realizador Lee Daniels, que quis fazer um filme pungentemente trágico, e dolorosamente tocante e nem uma lágrima ao canto do olho conseguiu puxar – o que já seria mau. Lee fez pior. Quase transforma uma tragédia numa comédia, embora ao longo do filme não haja oportunidade nem para o mais cínico e retesado esgar. A não ser que a algum espectador lhe ocorra o célebre sketch dos Monty Python dos homens ricos, em que cada um começa a desfiar as misérias da sua vida. Um começa por dizer que dantes a família era muito pobre e bebia chá frio, sem leite e sem açúcar. Outro acrescenta «e por uma chávena partida». O outro diz que nem chávenas tinham, se queriam beber aquilo era por um jornal enrolado. E o quarto diz que na família dele tinham de sorver o chá de um trapo velho. Daí a nada já viviam 26 pessoas num quarto sem mobília, em que metade do chão tinha desabado, os outros dentro de um tanque velho numa lixeira, os outros num buraco velho num charco, os outros numa caixa de cartão no meio da estrada, os outros enrolados numa folha de papel...
Em suma, não quer dizer que nos Harlem dos anos 80 não houvesse vidas incomensuravelmente lamentáveis, que se arrastavam miseravelmente para além do que prometia a força humana. Ao realizador bastava-lhe seleccionar uma desgraça para que o dispositivo da tragédia e da comiseração se accionasse. Escusava de acumulá-las a todas. Senão vejamos: temos Claireece Jones (Precious), uma teenager com obesidade mórbida. Como se já não fosse pouco, nas escola chamam-lhe «orca» e «aberração», na rua atiram-na ao chão, sente-se um «monte de gordura negra para ser varrida». Ainda por cima, é expulsa da escola, aos 16 anos não sabe ler nem escrever e a mãe chama-lhe cabra e atira-lhe latas de comida à cabeça, e quer é que ela deixe de estudar para pedir um subsídio à segurança social. Para piorar ainda mais a situação, ela está grávida. Querem pior ainda? Está grávida do segundo filho. Há algo mais que lhe possa acontecer? Claro. O filme ainda só vai a meio. É que o progenitor dos filhos é o seu próprio pai, e a miúda nasceu com trisomia 21 e chamam-lhe «monga». E a mãe ficou ressabiada porque «o homem dela fez mais filhos à filha do que a ela». E no primeiro parto, Precious estava no chão da cozinha com a mãe a dar-lhe pontapés na cabeça. Não há dúvida de que é preciso inventar um novo conceito. Para uma criança espancada e insultada por todos e violada pelo pai... e pela mãe, digamos que chamar-lhe «família disfuncional» é pouco. Bem, para abreviar a questão e não tornar a leitura demasiado penosa, diga-se apenas que a mãe a obrigava a comer chispe de porco com pêlos, que há uma cena de violação incestuosa em que o mau gosto envolve cenas intercalares de ovos estrelados a deslizarem na gordura, e que a mãe amamentava o marido e dava biberão à filha. Ainda há um bebé a rolar por uma escada e uma TV quase a despenhar-se-lhe em cima... Bem, para rematar isto tudo, esta gente toda é HIV positiva, pois então, nada de dar tréguas à assistência. Os estômagos nunca estão suficiente esmurrados. A inexperiente actriz Gabourey Sidibe (nomeada a Óscar tal como a obra na categoria de Melhor Filme) não tem qualquer margem de manobra de representação, limita-se ao registo ‘aqui vou eu a arrastar-me neste lodaçal de infortúnios’ – excepto numas cenas enchertadas, perfeitamente intragáveis, que representam as fantasias da miúda e misturam passadeiras vermelhas, fotografias que falam, coros de gospel, ela vestida de pop star disputada por imensos homens brancos, ou a sua imagem no espelho enquanto loura magrinha. Claro que trazer para protagonista uma afro-americana XXL que foge aos mais condescendentes padrões de beleza é um mérito do filme. Mas julgamos que, apesar das boas intenções, depressa se desliza para o voyeurismo. De boas intenções está o cinema cheio. E o programa da Oprah (produtora deste filme) também.

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