quinta-feira, 29 de março de 2007

Perto da vista

Sinal de Alerta, de Andrea Arnold


Sinal de Alerta é um filme europeu, daqueles em as personagens parecem reais, as vidas banais parecem dramaticamente reais, as suas caras e palavras parecem reais, até o sexo que fazem parece real.


Menos que uma cortina. Menos que uma fina barreira invisível. Menos que um espelho. É um filtro entre cá e lá. E lá a realidade é coada pelas câmaras. As ruas são filtradas pelo azul-chumbo do digital. As pessoas tornam-se esparsas, abstractas, desfocadas pelos zoom, irreais, como se quisessem deixar de existir... E o filme da britânica Andrea Arnold, Red Road (Sinal de Alerta, na versão portuguesa) começa justamente neste posto fronteiriço, nesta linha que separa as duas realidades, que é o centro de vídeo-vigilância de um circuito de câmaras montadas nas esquinas menos recomendáveis de Glasgow. Jackie (a actriz Kate Dickie) é uma voyeur profissional, vigia os passos dos transeuntes, assinala movimentos suspeitos, previne as autoridades É um voyeurismo benigno – mas será que isso existe? Isto é uma questão que o filme não se preocupa em responder. Pelo menos, não de forma linear.

Jackie tem pela frente uma parede forrada de ecrãs. Com o manípulo segue o seu próprio guião, faz close-ups, viaja de cena em cena, observa os planos-sequência, faz um travelling pelas vidas alheias, como se ela própria fosse um realizador a gritar Acção! e Corta!... São mosaicos de vidas, vultos errantes que arrastam os seus quotidianos pelas ruas frias e despersonalizadas da Escócia. Debaixo do cinzentismo do digital, pressentem-se outros e humanos cinzentismos. Jackie zela pela segurança destes nómadas dos quotidianos, já lhe conhece os hábitos, os trajectos, segue o rasto ao que elegeu actores principais do seu «filme» privado. Jovens embriagados que lutam, namorados que se escondem atrás do muro para se beijarem, o homem que arrasta um cão moribundo, a empregada de limpeza que dança solitária durante a noite, quando a empresa se torna numa espécie de cidadela evacuada.

Ainda que forrados a cinzento, há ali um subúrbio que pulsa. As câmaras captam-lhes os sinais vitais. A vida está mais do lado de lá, afinal. «La vraie vie est ailleurs» (Rimbaud). Jackie vive assolada pela solidão, acompanhada por estes vultos digitais. Parece desprovida de tudo, até de sonhos e de ansiedades. Distante, quando o colega casado a conduz para a sessão de sexo ocasional num carro, num terreno ermo. Está num estado de hipoglicémia emocional. E a actriz (notável e estreante, tal como a realizadora, numa longa metragem) mantém aquele registo inexpressivo, estudadamente contido, que deixa a história ir-se contando por si própria, numa tensão alimentada, sem grandes convulsões iniciais. Através de um guião depurado e expurgado de ruídos sentimentais.

Porque este é um filme muito europeu. Daqueles em que as personagens parecem reais, as vidas banais parecem dramaticamente reais, as suas caras e palavras parecem reais, até o sexo que fazem parece real.

Red Road é a primeira longa-metragem da realizadora e argumentista britânica, já antes vencedora de um Óscar para a curta Wasp. Este seu filme está integrado num projecto que envolve três realizadores que filmam a sua visão das mesmas personagens, na mesma cidade. O filme arrecadou o Prémio do Júri na edição de 2006 do Festival de Cannes e ainda cinco prémios BAFTA, os Óscares britânicos.

Mas a dada altura, o filme desdobra-se em dois. Justamente na altura em que Jackie vê no seu circuito interno de televisão aquele que ela queria arredar para longe da vista. E atravessa a fina barreira de que se falava no início. De espectadora passiva passa a protagonista. Do seu posto onde via sem ser vista, Jackie passa para o outro lado do espelho. Para o mundo que supostamente teria mais cor - mas não tem -, mais contornos - mas não tem. É a vida real, a que nós temos, com todas as suas irrealidades. Aqui o filme perde parte da sedução inicial. Perde o encanto de «filme caixa chinesa», em que o vigilante é vigiado por nós espectadores. Deste jogo de espelhos, desta dupla dimensão. Tão bem conseguida em filmes recentes como Caché de Michael Haneke, ou As Vidas dos Outros, de Florian von Donnersmarck, ou no tão justamente celebrado Alice, de Marco Martins. O filme corre o risco de se tornar num thriller banal, não muito convincente, passado nas torres descoloridas e urbano-depressivos da Red Zone. Onde a vingança e o erotismo estranhamente se cruzam. Ou não é tão estranho quanto isso, citando o título do filme de Fassbinder, «o amor pode ser mais frio do que a morte».

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