sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Contagem decrescente


4 meses, 3 semanas e 2 dias, de Cristian Mungiu







Acentuado arrefecimento diurno. Com tendência a agravar-se lá mais para o fim do filme. Tudo é frio e despigmentado, lívido e carrancudo, sombrio e autêntico neste regresso aos eighties romenos, na surpresa maior mas nada polémica da 60ª edição do Festival de Cannes, de 2007: o júri presidido por Stephen Frears atribuiu a Palma de Ouro a 4 meses, 3 semanas e 2 dias, a terceira longa, sem grandes orçamentos nem vedetas nem artifícios, do mediaticamente desconhecido Cristian Mungiu. Porque às vezes também acontece na vida real que os pequenos Davids do cinema de autor vençam os esmagadores Golias da cinematografia mundial, como Tarantino ou os irmãos Cohen. Seis meses depois, Cristian haveria de arrecadar um já não surpreendente «Melhor filme do ano», dado pela Academia de Cinema Europeu.
Corriam e derrapavam os últimos anos do demencial (des)governo de Nicolau Ceausescu, antes da sua queda e execução, em 1989. Eram os tempos do culto da personalidade à asiática, das fotografias manipuladas, dos informadores em cada esquina, das bichas nas ruas para comprar «o que houvesse», dos racionamentos de gás e electricidade, da ausência de liberdade de expressão, da proibição das máquinas de escrever, de um faraónico Palácio do Povo que arrasou um bairro inteiro de Bucareste, dos carros Dácia, das descoloridas torres de apartamentos... Mas a Roménia não será o tema deste filme, apenas o contexto. Aquele em que se movem duas raparigas que partilham um exíguo quarto de residência universitária, numa cidade romena. Estudem tecnologia, «porque com tecnologia não se é mandado para a aldeia». Tudo parece exíguo, e, ao mesmo, densamente povoado. De vozes, pessoas, tralha irrelevante, objectos inúteis, produtos traficados, coisas a acontecer lá atrás... E há a exiguidade dos espaços (Cristian gosta de filmar em ambientes reais), e a exiguidade das vidas, a exiguidade dos orçamentos, a exiguidade das intenções e dos destinos. Uma das medidas de Ceausescu quando chegou ao poder foi proibir o aborto, legalizado até aí na Roménia. Com a queda do regime esta, aliás, foi uma das primeiras leis a ser reinstaurada: a da legalização do aborto. Os romenos ainda estavam em fase de stress pós-traumático, no rescaldo dos tempos em que tudo se tinha de traficar no mercado negro, do sabonete aos cigarros, da gasolina às pastilhas elásticas. Também o aborto era mercadoria negra e clandestina. O título do filme refere-se ao tempo de gestação do feto não desejado que cresce na barriga de uma das raparigas. Enquanto isso, elas estão em contagem decrescente, a olhar a exiguidade do tempo que lhes resta. E terão de enfrentar a rudeza generalizada dos funcionários, contar todos os leis e alugar um quarto de hotel barato para proceder à intervenção. Só que o parteiro que trafica abortos recusa-se a receber apenas dinheiro... A humilhação, o rebaixamento, dificilmente um abismo poderia ser tão claustrofóbico.

Romenos como nós
E com este são três os filmes romenos que passaram recentemente nas nossas salas, depois dos excelentes A Morte do Sr Lazarescu, de Cristi Puiu, - uma espécie de on the road, quase em tempo real, a bordo de um ambulância pelo impiedoso, mais dantesco que «lazarescu» sistema de saúde na Roménia-, e 12:08 a Este de Bucareste, de Corneliu Porumboiu ,- onde se ridicularizavam os ímpetos revolucionários pouco impetuosos no decurso de um amador programa de televisão. E isto só vem provar que está mais que viva e recomenda-se a cinematografia destes nossos parentes da UE, de eslavas longitudes, língua latina e um temperamento muito português. Aliás, estes filmes tem um inidentificável gosto a filme português.
4 meses, 3 semanas e 2 dias (estreia hoje, quinta, dia 17) é um drama poderoso, cuja força vem da crueza, da autenticidade, da subtileza, da sobriedade dos actores, da coerência estilística do realizador. Depois de as duas estudantes se despenharem no abismo (ou é o abismo que desaba sobre elas?), a vida lá fora continua, é sempre assim. Mas elas já se tornaram menos presença e mais ausência. Como um útero desabitado.

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