quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Sangue negro

Haverá Sangue, de Paul Thomas Anderson




«A grande literatura é aquela em que encontramos verdades nossas», disse Ruy Duarte de Carvalho, em entrevista à VISÃO, na edição da semana passada. Usando de empréstimo as palavras do escritor antropólogo, um grande filme também deve ser aquele que contém «verdades nossas». Mesmo que elas estejam relegadas para a ordem do ruído de fundo, oculto e dissimulado, mas sempre presente. É o que, na maioria das vezes, acontece aos ruídos de fundo, estão tão continuamente presentes que se tornam ausentes. Em Haverá Sangue (estreia-se hoje, quinta, dia 14), de Paul Thomas Anderson (PTA), nomeado para oito Óscares, incluindo melhor filme e realizador, fala-se de ganância petrolífera e fanatismo religioso, sem nunca se deixar cair na tese simplificadora, ou demasiado óbvia, da alegoria política. Talvez porque as tais «verdade» deste filme sejam ainda mais inaugurais, ou mais primitivas – ainda mais humanas e universais, portanto. Haverá Sangue fala de homens e, logo, de ira, inveja, ambição e opressão.

Uma estreia de PTA é sempre um acontecimento cinematográfico. Não só porque estamos perante um dos mais dotados realizadores da sua geração, também porque depois de Magnólia (1999), filme de culto inscrito por muitos entre os melhores de sempre, a expectativa agiganta a ocasião. E porque PTA não é propriamente um realizador bissexto, desde 2002 ( Embriagados de Amor) que não assinava um filme. Mas sempre que o faz, surpreende, trilha caminhos inesperados, galga os separadores e segue por outras estradas sem ligação directa com aquelas que as antecederam. PTA parece fazer parte daquela categorias de pessoas que não se contentam em repetir fórmulas bem sucedidas, incapazes de produzirem algo banal – ainda quando o tentem.

Haverá Sangue (livremente baseado no romance Oil de Upton Sinclair) é um filme sobre a ascensão e desintegração de uma personagem – um garimpeiro de ouro negro que no início do século se torna um magnata do petróleo. Daniel Day-Lewis (um mais que provável vencedor do Óscar de Melhor Actor) tem um desempenho antológico, absolutamente poderoso. É um daqueles papéis pelos quais os grandes actores de Hollywood aguardam uma vida inteira. Day-Lewis aparece em praticamente todas as cenas, ao longo das duas horas e meia de filme, ele é um poço de contradições, afável, violento, psicótico, conflituoso, complexo, anti-social (odeia pessoas), transita do registo contido ao mais enlouquecido, vulcânico mesmo, emissor de lavas, agressões e explosões inesperadas. Corre-lhe petróleo nas veias.

Tem qualquer coisa do torturado e icónico James Dean, em O Gigante, a história do homem que perdeu no amor, ganhou no petróleo, mas não consegue vencer os seus ressentimentos, invejas, solidões - o seu ódio pela humanidade em geral. Tem qualquer coisa do obsessivo e suspeitoso Bogart em O Tesouro da Sierra Maestra (1948), de John Huston, filme que PTA reviu insistentemente enquanto rodava Haverá Sangue. Tem definitivamente qualquer coisa de Orson Welles, em Citizen Kane, na história do homem que se vicia em poder e acaba... poderoso, sozinho e a pronunciar uma enigmática palavra que sintetizava tudo aquilo que ele perdera: rosebud.

E enquanto se advinha o combustível viscoso e borbulhante a ser sugado nas entranhas daquela terra inóspita do Texas, se vão denunciando os interiores das personagens. Também viscosos e negros. No terreno confrontam-se em duelo o prospector de petróleo e um pregador, evangelista e histérico (Paul Dano de Miss Little Sunshine). Ambos disputam ovelhas. Um acenando-lhes com a materialidade. Outro com a espiritualidade. Ambos são lobos com pele de cordeiro. Tudo isto ao som da tortuosa e indefinível banda sonora, inquietante, clássica, átona, experimental, interpretada pela orquestra da BBC e composta por Jonny Greenwood, guitarrista dos Radiohead, que ajuda a remoer os demónios interiores das personagens. O duelo final há-de acontecer num operático terceiro acto, numa alucinada e kubrickiana sequência. Há-de se cumprir a profecia do título. Mas não basta. Não há redenção nem Rosebude - ainda que se perfure até às profundezas do filme.

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