segunda-feira, 19 de maio de 2008

Rosa pouco choque

Angel, de François Ozon


É possível fazer um filme sobre o kitsch sem se tornar kitsch? Ou sobre o melodrama sem se tornar insuportavelmente melodramático? Possível é, claro, mas não parece ser o caso do último filme de François Ozon, Angel. As perguntas acima são retóricas, servem apenas para ganhar a cumplicidade antecipada do leitor, mas a verdade é que bem pode esta eterna promessa (nem sempre correspondida) do cinema francês ter vestido as suas personagens de opulentos adornos e faustosos fatos, porque desta vez... desta vez elas vão mesmo nuas.

E bem pode Ozon fazer evocações assumidas ou referências cinéfilas ao período mais rosado de Hollywood. Bem pode dizer que a sua personagem feminina tem muito de Scarlett O’Hara, de E Tudo o Vento Levou... Chega-se ao fim das mais de duas horas de Angel e não se percebe se o que se acabou de ver pretendeu ser um pastiche menor, ou uma homenagem, ou uma recodificação de género, ou um conto de fadas kitsch, ou uma vanguarda regressiva falhada... Ou se tudo isto junto fez de Angel um filme formalmente certinho, mas a abarrotar de vacuidade. O realizador captou o espírito cor de rosa do melodrama, os violinos, os tempos, os tiques, as cores garridas, os artifícios visuais, até o chroma-key, o efeito anacrónico de sobrepor imagens das pessoas diante da paisagem que corre por trás. Mas não só não nutre a narrativa de ponta de ironia, como não consegue reciclar os clichés.

Angel é uma jovem sonhadora, na Inglaterra pré-Primeira Guerra. Filha da merceeira da terra, fantasia viver num palacete aristocrata, de gosto duvidoso, chamado Paradise House, onde existem pavões e um batalhão de criados. Tem um tenebroso talento para produzir histórias cor-de-rosa, além de uma tia que parece o Mário Viegas e um príncipe encantado que parece Pedro Passos Coelho – pelo menos, na sua sensaboria. É um pintor atormentado que não parece ter a menor palpitação pela heroína desta história. Depois ainda há um editor condescendente, sem a mínima utilidade na história e a sua ainda mais supérflua mulher – a actriz fetiche de Ozon, Charlotte Ramplin, que aqui aparece a picar o ponto.

Angel concretiza todos os seus sonhos, ao tornar-se uma bem sucedida escritora light. Porque lhe chamam light se é tão caloricamente açucarada?

Comparar Angel de Ozon com Scarlet O’Hara, de E Tudo o Vento Levou não é abusivo: é simplesmente arrepiante. Não só não lhe chega aos calcanhares. Nem sequer ao solo que eles pisam. Mas admitamos que há qualquer afinidade entre o tom afectado de Angel e a proprietária sulista de Tara. Na verdade condensa os piores lados da Scarlet, da Jo (das Mulherzinhas de Cukor), a mais implicante das irmãs, a que queria ser escritora e era interpretada por Katharine Hepburn. Também tem qualquer coisa da outra Hepburn, a Audrey, de My Fair Lady, do mesmo realizador, na sua faceta mais iletrada. Há igualmente um toque de A Casa dos Espírito na homossexualidade devota (também bastante enfadonha) de uma cunhada…

Como Ozon lhe nega qualquer réstia de sentido de humor, ou de contraponto de contemporaneidade, a personagem não descola do caricato e o próprio filme acaba por se tornar tão florido, adocicado e superficial como a literatura light que a pobre Angel produz.

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