quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Mortinho por chegar ao hospital

A Morte do Senhor Lazarescu, de Cristi Puiu

A Morte do Senhor Lazarescu, do romeno Cristi Puiu, é um filme sobre a morte, a rebentar de vida pelas costuras
Pedro Abrunhosa, que é um óptimo fazedor de frases e de soundbytes, tem no último álbum uma música que diz: «de que serve a terra à vista se o barco está parado». O senhor Lazerescu é um náufrago de praia. De nada lhe servirá estar na ambulância a caminho do hospital, de nada lhe servirá estar mesmo dentro do hospital. Está condenado, desde o início, a este afogamento seco. Está condenado desde o genérico, com a inevitabilidade de uma tragédia grega, e a fatalidade inelutável de um título, A Morte do Senhor Lazarescu, do premiado cineasta romeno Cristi Puiu.

Os romenos são esses nossos parentes afastados de eslavas longitudes, língua latina e temperamentos portugueses. E há qualquer coisa de muito português nesta segunda longa de Cristi Puiu. Uma espécie de on the road, passado a bordo de uma ambulância que atravessa a noite da mais despigmentada (e deprimente?) das cidades da UE: Bucareste. A cidade, aliás, nunca é avistada, nem através das janelas, apenas se pressente e se lhe escuta a respiração noctívaga. Lazarescu há-de morrer sim, mas devagar. Em lenta progressão para a morte. Em planos longos e demorados, numa delonga hiper-realista, às vezes radical e brutal, sem artifícios, quase sem elipses, quase em tempo real, cenas cuidadosamente descuidadas, com câmara à mão, personagens reais, contextos a roçar o documentário, diálogos paralelos, coisas a acontecer lá atrás...

Lazarescu carrega consigo este bíblico nome (embora aqui não se fale da rápida ressurreição mas da lenta agonia de Lázaro). Tem 63 anos, três gatos, uma filha emigrada, uma irmã ausente, um problema de alcoolismo, um apartamento sórdido, cheio de detritos, jornais encardidos e cheiros pestilentos. E também uma dor de cabeça e vómitos. Os vizinhos acodem vagamente prestáveis. Os paramédicos também, profissionalmente solícitos. Os médicos não tanto. Mas todos, desde vizinhos, condutores da ambulância, médicos, enfermeiros ao próprio Lázaro, parecem padecer de um mortal enfado. Aborrecem-se de morte. Sofrem de solonência crónica. Muito à portuguesa.


Esta é uma história de um moribundo em bolandas. Na prática todos querem que ele vá morrer longe. Repudiado de hospital para hospital, Lázaro vai-se extinguindo, vai perdendo o controle urinário, vai perdendo a capacidade da fala, as palavras enrolam-se-lhe, as frases torna-se desconexas, afásicas. Lazarescu vai-se apagando, ao fim de quatro serviços de urgência e duas horas e meia de filme. Já quase não é humano, mas uma massa disforme de carne em cima de uma maca. Já quase não é homem, apenas do sexo masculino.

Cristi Puiu inspirou-se num caso real, acontecido em Bucareste, em que um doente foi largado no meio da rua por uma ambulância, após ter sido recusada em vários hospitais. Piui é um hipocondríaco assumido, e vive num bairro de Bucareste «onde as pessoas não falam do barroco espanhol mas da melhor maneira de ganhar dinheiro clandestinamente». Muito mais do que uma denúncia institucional, explora neste filme o que há de mais dramático da condição humana: consciência da inevitabilidade da própria morte. Ela carece de sentido, é absurda, até ridícula, mas vai acontecer. E isso é tão dramaticamente humano.

É difícil encontrar em sala um filme como este – em que tudo é insuportavelmente humano. É um filme sobre a morte, a rebentar de vida pelas costuras. Há vida nas escadas do apartamento de Lazarescu, a pulsar de ruídos domésticos dos vizinhos e de uma música tecno abafada. Há vida naquelas urgências de hospital, de profissionais distantes, enfermeiros sonolentos, de médicos fardados de imperturbalidade. Há vida na apatia das salas de espera. Há vida no desleixo, na incompetência, na indiferença, na burocracia. Lazarescu tem pouco a dizer, e o que tem não interessa a ninguém – nem a nós. Todos o censuram por beber – e com razão. E o realizador não lhe concede a graça de umas últimas palavras (e isto é muito mais humano do que proferir sentenças de última hora). Ele esvai-se nessa solidão fervilhante de vozes e luz que é um banco de hospital. Ele morre sozinho, num ambiente asséptico e neutro (o que hoje em dia se tornou dramaticamente humano).

Interessante é ver como a tensão num filme passado em (vários) bancos de urgência não nos é dada através da pressa e aceleração, como nas hiperactivas séries televisivas sobre o tema. O que provoca tensão é a demora, a espera, o cirurgião mais preocupado em encontrar um carregador Nokia, o médico que faz espírito e diz que o doente tem o fígado «do tamanho do parlamento» (numa alusão à faraónica Casa do Povo de Ceausescu); o médico que toma conta da ocorrência, como um polícia de trânsito; o médico legalista que emperra numa questão burocrática – e nós a vermos que se se tardar muito mais vale chamar o médico legal...

Durante as duas horas e meia de filme estamos em plena comunhão com a natureza... humana. Fica-nos a frase de Philip Roth: «A velhice não é uma batalha, é um massacre». E outro verso de Abrunhosa, só para manter a mesma canção: «De que serve ter a chave se a porta está aberta». É a morte. É a vida...

Sem comentários: