quinta-feira, 12 de abril de 2007

Alterações climáticas

Climas, de Nuri Bilge Ceylan


O degelo interno do casal debaixo de um sol inclemente de Verão, numa praia turística. Uma centelha de calor (ou a ténue esperança dela), debaixo de um nevão, também inclemente, de Inverno, na Turquia profunda.

Hitchcock contava que uma vez acordou durante a noite com uma ideia luminosa para um filme. Rabiscou-a num papel e voltou a adormecer. Na manhã seguinte, correu a ver qual teria sido a sua genial inspiração nocturna. No papel estava escrito «boy meets girl». Tratava-se de uma grande ideia, de facto. Este é o what if para 90% dos filmes, das letras de músicas, da poesia, dos livros...: «E se um homem se apaixonar por uma mulher?». Climas (Prémio da Crítica Internacional, em Cannes), a quarta longa do turco Nuri Bilge Ceylan, parte da premissa contrária: «E se um homem se desapaixonar de uma mulher?». Outro tema clássico. De amores arrefecidos e casais desavindos está a história do cinema cheia. Tão clássico como clássicas são as ruínas que abrem a primeira cena do filme. Colunas, apenas, teimosamente de pé. Pilares que ainda estão lá para sustentar coisa nenhuma.

Nunca sairemos deste registo arruinado de que os primeiros planos são metáfora. Percorremos as ruínas de uma relação, os restos arqueológicos de um amor, as sobras de tudo aquilo que caiu por terra e já não se pode reconstruir. Os destroços do romance jazem ali, a céu aberto, em lenta e dolorosa erosão. Mas há restos soterrados que permanecem. Vivos, intactos demais, pelo menos, durante uns tempos. Como as raízes de uma árvore decepada.

E aqui Ceylan ousa o impossível. Que é filmar as zonas sombra do indizível, do inexplicável, do que está latente, mas não se diz e não se explica... Por isso este é um filme de silêncios, de espaços e de atmosferas. Atmosferas interiores a que o realizador faz (perversamente) corresponder as exteriores. O degelo interno do casal debaixo de um sol inclemente de Verão, numa praia turística. Uma centelha de calor (ou a ténue esperança dela), debaixo de um nevão, também inclemente, de Inverno, na Turquia profunda. Os nossos ecossistemas íntimos e conjugais não reagem à temperatura ambiente. Nem aos espaços. Esta história passa-se entre a laica e intelectual Istambul e o abandono do leste turco. Mas podia passar-se no ambiente nórdico de Bergman ou no italiano de Rosselini... São as nossas alterações climáticas, as nossas metamorfoses interiores – tão imprevisíveis, afinal, quanto as meteorológicas.

E no boletim meteorológico deste casal (interpretado pelo próprio realizador e pela mulher), prevê-se um acentuado arrefecimento nocturno. Entre ele e ela pouco mais há do que o vazio. Palavras só as banais. Cabe ao espectador colmatar esses vácuos. E encaixar o desconforto das poses imóveis e dos grandes planos que ampliam os poros da pele. E dos silêncios longos, povoados de sons, zumbidos, ventos uivantes, passos, cigarros sorvidos, avelãs que estalam entre os dentes. Como uma conspiração dos ruídos. E ainda há o efeito desencantatório, quase insólito, das notas desgarradas e toscas do Para Elisa, de Beethoven, saídas de uma maquineta manual. Excessivamente doce para aquele degelo amoroso em curso. Excessivamente dissonantes para um quarto de pensão numa Turquia rural...

Entre um guião esfoliado de excrescências, a exigência dos enquadramentos, os sobressaltos estilísticos de raccord, o pudor da câmara, a violência subliminar, o laconismo dos planos, Climas pode não chegar a comover. Falta-lhe humor – todos amores e suas cartas são ridículas, o mesmo se diga dos desamores e das rupturas. Mesmo aquelas que parecem que nunca acabam de se romper. Não comovente, mas perturbadoramente reconhecível.

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