quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

As leis da atracção

Call Girl, de António Pedro Vasconcelos



Das pessoas pelo dinheiro ou dos homens pelas mulheres fatais? Bem pode António-Pedro Vasconcelos dizer que Call Girl é sobre a «queda das utopias e o triunfo do capitalismo». Soraia Chaves, numa versão quatro em um, enche o filme do princípio ao fim.




«Não sabes o que perdes». São as últimas palavras do filme de António-Pedro Vasconcelos, Call Girl. A mulher sedutora diz ao polícia com mau feitio: «Não sabes o que perdes». E na volta, ele até sabe. Porque naquele mundo (no do filme, pois, que não haja confusões) nada se perde, tudo se trafica. Nada é de graça, tudo tem uma etiqueta pregada. Nada é reembolsável, tudo traz um alarme agarrado. Nada é cavalo dado, e todos olham o dente. Nada se auto-sustenta, ninguém sustenta a queda de ninguém. Nada é «marca branca», as jóias hão-de ser da Tiffanis, os perfumes Chanel nº 5, as revista Vogues e os tailleur Dior. Nada se dá, tudo tem um preço. Até um sobreiro que demora 50 anos a crescer. Ou uma reputação. Ou um bigode. Ou o amor... E esta última consideração leva-nos de regresso à personagem central do filme: a de Soraia Chaves. A prostituta de luxo, que não é desgraçadinha, nem está à espera de ser salva, nem tem um filho escondido num colégio de freiras, nem foi abusada em criança, nem tem um coração de ouro. Simplesmente ganha mais num dia do que num mês inteiro atrás de um balcão. António-Pedro Vasconcelos não encontrou melhor encarnação da «avidez do capitalismo» do que esta Maria, que às vezes é Vickie. Que às vezes se veste como uma colegial, outras de cabedal sadomasoquista; às vezes é loura, outras morena – à vontade do freguês. E ela despe-se convenientemente para as ocasiões. Aqui a palavra valor deve ser lida no sentido de quantia que aparece nas tabelas do Deve e do Haver. Mas todos têm o ponto fraco – e esse pode até nem ser convertível em euros. Mas apesar de tudo, «ela prefere ser infeliz no seu Audi do que num banco de autocarro».

Só que... Só que estas foram as inaugurais reflexões de um realizador: o fim das utopias, o colapso de muitas das bandeiras da esquerda, o triunfo do capitalismo... E as meditações de Dostoiévski – «Se Deus não existe, tudo é possível» – que rapidamente transportaram o realizador para novas interrogações: «Se o único valor é o dinheiro, e a tentação é tão grande, o que leva as pessoas a serem honestas?». Só que uma coisa são as intenções de um projecto, outra a concretização do mesmo. Soraia Chaves enche de tal forma a tela, que Call Girl acaba por tornar-se menos um filme sobre as leis da atracção do dinheiro e mais sobre as leis da atracção de uma mulher e todo o género de homens que gravitam em torno dela.

E este é um caso em cem no cinema português: o do casting perfeito. Quando as actrizes se encaixam tão bem no papel das personagens que até parece que o filme foi escrito para elas. Não foi assim no caso de Call Girl. António-Pedro Vasconcelos nem pensou em Soraia Chaves quando decidiu fazer este thriller, à policial americano, em que todas as personagens se esgatanham para ser o predador de escala acima na cadeia alimentar. Ele gostam de criar personagens assim, moralmente reprováveis, habitantes do submundo, excessivas, «bigger than life». E então reuniu velhos arquétipos narrativos do cinema, a mulher fatal, o homem mais velho por ela seduzido e por ela caído em desgraça (como no Anjo Azul), a dupla polícia intempestivo e polícia temperado... Arranjou em Nicolau Breyner um autarca alentejano que toma viagra e abdica do bigode e dos ideais, por causa de uma mulher. E em José Raposo e num impetuoso Ivo Canelas, a tal dupla policial, que é sempre tão conveniente para os filmes, em abono do contraditório. Faltava-lhe o principal: a anti-heroína que leva os homens à perdição. «Em Portugal existem muitas actrizes com talento. Mas nem todas são sexys. E dentro das que são sexys nem todas tem classe. Eu precisava de uma actriz que reunisse tudo isto: talento, sensualidade e classe... E isso, sim, era muito difícil de encontrar». Quando a viu em O Crime do Padre Amaro (a sua primeira aparição no cinema, em 2005) a escolha não se tornou desde logo evidente. Era demasiado nova para o papel. Não teve a certeza se o nível de representação de Soraia, ainda uma recém-chegada da moda, conseguiria suportar a força e todas as metamorfoses da personagem. Mas desde logo lhe captou uma característica rara, difícil de explicar, «ou se tem ou não se tem»: a telegenia. «A câmara enamora-se da Soraia». A construção da personagem fez-se por dentro e por fora. Durante meses António-Pedro Vasconcelos diligenciou testes de figurinos e de penteado. Convenceu-a a não apanhar sol para ficar com a pele branca, pintou-lhe de preto os cabelos. Resultado: Soraia (ou Maria ou Vickie) quase que toma conta do filme.

«Há um horrível preconceito contra as mulheres bonitas. Foi isso que matou o cinema europeu. As actrizes europeias bonitas deixaram de aparecer da tela, e o cinema europeu desapareceu do mapa», refere António-Pedro Vasconcelos. Soraia Chaves, 25 anos, não encolhe os ombros a este preconceito. Não põe um ar de Marylin que respondia «Chanel nº5, quando lhe perguntavam o que vestia na cama. Não faz poses à Mae West que se orgulhava de falar duas línguas: inglês e linguagem corporal. Soraia Chaves cultiva a simpática postura de principiante, que ainda tem muito a aprender. Já frequentou cursos de representação no estrangeiro, absorve os conselhos dos colegas seniores. «O que ela tem de incrível é que de cada vez que ela aparece no plateau vem sempre com mais qualquer coisa nova aprendida. Está sempre atentíssima a todos os pormenores, sempre a captar novas coisas, a aprender», comenta Nicolau Bryener, talvez o actor português mais solicitado para filmes - «perto de 50», e que já trabalhara com Soraia não só em O Crime do Padre Amaro, mas também enquanto realizador, na série televisiva Aqui não Há Quem Viva. «Eu sou pelo cinema-espectáculo. Sou como os miúdos, ‘vá lá divirtam-me’. É o que eu espero de um filme», continua. Este diverte, é verdade. Tem diálogos soltos, de uma banalidade construída, com produção de punch lines a um ritmo certo. E cenas audivelmente chocantes. Pelo menos foi o que sentiu um figurante testemunha de Jeová, que abandonou o set, susceptibilizado com a linguagem sexualmente explícita. Deve ser o filme português que mais vezes utiliza a «f-word». Se se arriscar a «frase sim, frase não» não será uma hipérbole muito arrojada. «É uma linguagem honesta, aquelas pessoas falam mesmo assim», acha o argumentista ..... «O guião já tinha muitos palavrões, mas eu fiz questão de acrescentar ainda mais nas minhas falas», diz Ivo Canelas acerca do seu detective muito cheio de adrenalina e temperado com um toque de misoginia, algures entre o Professor Higgins e o «o que tu queres sei eu» do RAP. «Ele é um gajo que dá murros na mesa e fala mal, e isso tem de estar marcado»... Foi de Ivo Canelas a ideia de trazer para o filme a única citação cinéfila expressa (as implícitas são o bunueliano início e o policial negro): um cartaz de Cães Danados de Quentin Tarantino, que o detective traz pendurado ao lado da secretária. Mas à parte da maneira de vestir do polícia, com fato preto, camisa branca e uma gravata também preta mal apertada (como os gangsteres falhados de Tarantino), pouca inspiração se vê da esmagadora agressividade que marcaram aquele filme. Violência só mesmo a verbal. Nada de sangue a jorros, nem de orelhas cortadas, nem de processos interrogatórios torturadores. Alguma exaltação, socos e equimoses – é tudo. É um filme à americana muito à portuguesa, onde até o mafioso mais temível (Joaquim de Almeida no seu papel do costume) sucumbe à brandura do costume. Um autarca que troca pequenos favores de alcatroamento por enchidos ou outras gastronomias em tupperware. Uma briga de bar de hotel. Uma toxicodependente a ressacar (excelentemente interpretada por Ana Padrão). Um clímax final conseguido numa interrompida fuga no aeroporto construída em 78 planos. E a cena colectiva (umas das mais bem conseguidas do filme) em que um velhinho alentejano comunista (Raul Solnado) que protagoniza uma espécie de levantamento de rancho num lar de idosos, ao som da internacional. O resto não é nem silêncio. Nem Soraia Chaves é ruído.

Sem comentários: