quinta-feira, 18 de junho de 2009

O papel! Qual papel?

Ligações Perigosas, de Kevin Macdonald






O maior defeito deste filme és tu, leitor.

Este despudorado insulto, com que Machado de Assis invectivava os leitores, também se aplica, neste caso, aos espectadores do novo filme de Kevin Macdonald. É um thriller político, que envolve poder, dinheiro e sexo, formalmente perfeito, sem falhas de ritmo nem de casting, com diálogos cumpridores, uma banda sonora rebarbativa e uma trama razoavelmente bem urdida. O que o torna, então, intrinsecamente desinteressante? (tão desinteressante, aliás, como O Último Rei da Escócia, do mesmo realizador que desperdiçava um plot e um actor cheios de potencial). O que o condena a permanecer para sempre nesse limbo de esquecimento, em que naufragam rapidamente uma certa categoria de filmes? Há filmes bons, há filmes maus, e depois há os prescindíveis, aqueles que não atravessam para a outra margem, e se afundam simplesmente naquelas zonas onde a memória é lodosa e submersível. Ligações Perigosas pertence a esta categoria anfíbia, como as criaturas que habitam esses charcos da desmemória. A começar pela tradução do título, do original intraduzível State of Play...
Quantos filmes houve, depois da adaptação do Laclos (Ligações Perigosas), que já se chamaram assim? Que crise de originalidade terá atacado os nossos tradutores de títulos?

Se parece tudo bem, afinal o que falta a este filme? Quando é mau é porque é mau, quando não é completamente mau, é porque se esquece... A conclusão é mesmo esta: o maior defeito deste filme és tu, espectador. Que já viste tantas vezes, antes, a mesma fórmula, o mesmo modelo, o mesmo preceito, que criaste esta espécie de resistência auto-imune, por excesso de doses acumuladas.

O filme de Macdonald é perfeitamente funcional, um exemplo típico do mainstream correctinho ao melhor estilo de Hollywood. Não subverte nenhuma das convenções do género, nem sequer tenta inovar, segue pela via garantida do que já foi testado inúmeras vezes. Há um jornalista honesto, um congressista emergente e a sua amante, morta em circunstâncias misteriosas. E depois tudo progride numa série de turning points ágeis, de twists e contra-twists, em que o que aquilo que é nunca é o que parece – como compete a todos os thrilers policiais.

Russel Crowe é este jornalista cheio de estilo que conduz um carro decrépito e também cheio de estilo. E o filme começa com o jornalista a chegar ao local do crime e a entrevistar, também com muito estilo, um polícia. Já estamos mais do que convencidos de que este não é um jornalista qualquer. Mas já na redacção, vem a confirmação, quando lhe vemos a secretária coberta com pilhas instáveis de papelada. Aqui chega o toque do século XXI do filme. Reflecte sobre a importância do papel. Qual papel? Ele é um jornalista da velha guarda, ainda do tempo dos papéis pintados com tinta, daqueles resistentes, em vias de extinção que continuam a achar «que são jornalistas e não publicistas» (é sempre reconfortante ouvir isto). Pouco depois aparece a antagonista – uma jornalista blogger, que «despeja vómitos on line». São estes dois seres incompatíveis (mas prestes a perder o prefixo e a quebrar a barreira das novas tecnologias) que irão resolver o estranho caso do congressista (Ben Affleck) e sua amante assassinada.

Apesar de ter seguir todo o receituário do século passado, o filme está impregnado de século XXI. Não é só a trama que gira em torno da corrida ao ouro do terrorismo islâmico por parte de certas empresas duvidosas. Todo o ambiente é já o da América pós-Bush. A certa altura Crowe até diz «yes we can», a propósito de qualquer coisa - mas já ninguém diz esta frase impunemente.

Atenção: apesar de esquecível, este é um filme inteligente. Aproveitem: é bem capaz de ser o último filme adulto que terão oportunidade de ver até à próxima rentrée, porque daqui até Setembro, o melhor é mergulhar em apneia, até que passe a onda dos filmes silly que costumam inundar esta season. Ligações Perigosas pode não ter nada assim de muito profundo para nos transmitir, mas é sempre muito consolador ouvir dizer que, «apesar de as pessoas já não lerem jornais», que apesar dos «jornais serem papel de embrulho», as pessoas «ainda sabem a diferença entre notícias e lixo». Saberão? Enfim, são insultos a mais para um só post...

2 comentários:

Ladislau disse...

Se o filme ~merece tantos insultos porque é que deu três olhinhos? Já no filme a baixo é a mesma coisa. Que sejam beovelentes com os filmes portugueses ainda é como o outro, agora dessas cenas americanas e francesas...
Mas o texto é bom... A culpa é sempre do espectador, o realizador tem sempre razão, já dizia o Godard ou coisa assim

Ana Margarida de Carvalho disse...

Sem desprimor para a opinião do leitor e seguidor Ladislau, deixo apenas a sugestão de reparar na legenda das classificações dos filmes na coluna da direita. Este é um filme «a ver»... uma vez.