quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Quero o meu dinheiro de volta

Capitalismo: uma história de amor, de Michael Moore






Michael a atacar o mal americano pela raiz e Marx a rebolar de riso lá no seu túmulo. Para o capitalismo, com aMoore...

As histórias de amor começam sempre bem, mas só são boas quando acabam mal. Um dia, ela – a América – piscou-lhe o olho. E ele – o capitalismo – retribuiu-lhe o galanteio. O pretendente parecia divertido, dinâmico, cheio de livre iniciativa privada. Tratou logo de eliminar a concorrência, dominar todos os meios de produção e investir num lucro futuro. A América apaixonou-se. Perdidamente. E fez como todos os apaixonados: esqueceu-se de reparar nos defeitos.

O novo documentário de Michael Moore (Capitalismo: Uma História de Amor estreia-se hoje, 26) apanha este casal na curva descendente do romance. Quando a América começa a perceber que, afinal, o capitalismo não era tão bom partido quanto isso (com a excepção, talvez, de todos os outros).

E onde ela via saudável competição e proveito, agora vê ganância desvairada, indiferença, desprezo. O casamento está por um fio. Quase que se anunciou o divórcio, aquando da derrocada da bolsa, em 2008. Enfim... as coisas lá se recompuseram (ironicamente, graças a uma manobra financeira muito pró-socialista), mas já nada foi como dantes.

Depois de ter investido contra a violência e as armas (Bowling for Columbine), contra o burlesco George W. Bush (Fahrenheit 9/11), contra a ausência de um serviço nacional de saúde (Sicko), o «mais temido dos realizadores americanos» faz, talvez, o seu mais incómodo documentário, capaz de pôr em polvorosa todos os Joes, the Plumbers do planeta (aquele canalizador, lembram-se?, que ficou famoso durante a campanha de Obama por lhe ter dito que não queria distribuir a sua riqueza com os pobres). Desta vez, ele enfurece a direita histérica mas também a esquerda que se silencia. O que provavelmente mais incomoda os canalizadores deste mundo nem é o facto de Moore ser obamista, ou democrata, ou de dizer que existe um conluio entre Wall Street e o Congresso, ou de denunciar a pandemia da corrupção e a impunidade das altas finanças. O que os incomoda é ele ser um católico praticante – algo raro nos EUA – e mostrar, neste filme, os princípios cristãos a distanciarem-se do capitalismo como o diabo da cruz. Moore não pisa só o território sagrado dos americanos, tira-lhes o chão debaixo dos pés.

E, por isso, quando o filme se antestreou, no Festival de Veneza, em Setembro, o realizador foi atirado aos leões. Invocaram que ele era milionário, que capitalizava imenso com filmes anticapitalistas e até que era gordo.

Moore é um agitador profissional, mas, acima de tudo, um cineasta inigualável, que faz documentários-tese, como tantos outros tentaram sem nunca chegarem perto. Recorre ao seus habituais e infalíveis métodos. O ritmo, a música, o humor, os casos humanos, a sua própria voz-off, as entrevistas de rua, os depoimentos, as imagens de época, a montagem energizante, a sua aparição enquanto também protagonista da história, os happenings... Dirige-se de megafone às empresas e bancos salvos, depois do crash, pelos dólares dos contribuintes, a exigir o dinheiro de volta. E cerca Wall Street com aquela fita amarela a dizer Do Not Cross, com que os polícias americanos costumam isolar a zona do crime.

Assistimos a famílias a serem despejadas por xerifes, quando já não conseguem pagar as prestações e hipotecas, a bairros inteiros com as casas seladas para penhora, a agentes imobiliários que esfregam as mãos com as habitações devolutas e à engenhosa e tétrica estratégia das grandes multinacionais, que efectuam seguros de vida a trabalhadores novos, e, se estes falecem, entram com o haver nas folhas das receitas. Chamam-lhes Dead Peasants, e parece que somos remetidos para a Rússia deprimida do século XIX, quando um sombrio Tchitchikov andava a recolher almas mortas, no célebre romance de Gogol. Moore resgata, ainda, um certo e esquecido discurso de Roosevelt a apelar à justiça social. E, no final, deixa-nos com a Internacional, cantada numa muito cool versão jazz. Como quem diz, revoltem-se, pá.


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