quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Águas passadas

Águas passadas


Deixa Chover, de Agnès Jaoui





São filmes como Deixa Chover que nos fazem acreditar que existe vida para além das grandes produções americanas

Quando o silêncio ocupa espaço, e tudo parece denso e viscoso... Quando já não há nada para dizer... Quando parece que o mundo inteiro se uniu para nos tramar... Nem tudo está perdido: ainda resta o estado do tempo (ou o das estradas) para culpar e caluniar e maldizer e descarregar em cima dele. O tempo tem as costas largas.

Em Deixa Chover (agora em cartaz), o novo filme da actriz/argumentista/realizadora/cantora francesa Agnès Jaouiu, as personagens femininas passam a vida a injuriar a meteorologia: porque está frio, porque chove, porque está desagradável... E esfregam os ombros, queixam-se da intempérie, arrepiam-se com os ventos hostis. A realizadora que, recentemente, passou por Portugal a apresentar o seu filme, durante a 10ª Festa do Cinema Francês, explicou à VISÃO que, enquanto escrevia o guião, com o seu companheiro de aventuras cinematográficas e de vida (o também actor e co-argumentista Jean-Pierre Bacri), calhou ouvir a música L’Orage, de George Bressens. Cujo primeiro verso diz justamente «Fala-me da chuva e não do bom tempo». «As pessoas, mesmo as mais racionais, têm tendência para atribuir culpas ao tempo, quando estão deprimidas», comenta. Como se os grandes deuses do clima lançassem lá de cima a sua fúria para perseguir pessoalmente aqueles que já se sentem miseráveis cá em baixo.

Depois de O Gosto dos Outros (2000) e de Olhem para Mim (2004), a cineasta reaparece com uma comédia amarga de uma simplicidade aparente. Agathe Villanova (a própria Jaoui), uma escritora de sucesso parisiense, activista feminista, recém ingressada na política regressa à terra-natal, por dez dias, para participar numa convenção do partido que a elegerá, em virtude das quotas para mulheres. Volta a casa da mãe, morta há um ano, onde vive a irmã e uma velha criada argelina. Entretanto, o filho da empregada (Jamel Debbouze), recepcionista num hotel menor, quer realizar um documentário sobre Agathe, com um seu colega mais experiente - e aqui entra em cena o fantástico Jean-Pierre Bacri que desempenha a mais incrível personagem. Ele é um falhado. Falhou na profissão, falhou no casamento, na relação com o filho, na relação com a amante. Ele é desajeitado, embaraça os restantes com os seus ridículos malogros, está sempre a perder os óculos, a esquecer-se da bateria da câmara, estaciona o carro no lugar errado. E no entanto, é um optimista delirante, todos nós conhecemos pessoas assim, e geralmente não gostamos de as ter por perto. Jaoui volta ao seu tema de sempre: a capacidade de se meter na pele dos outros. E o desconforto que essa transmutação pode causar. Porque metermo-nos na pele do outro é sempre um confronto connosco próprios. E com os nossos falhanços pessoais.

A deputada e escritora de sucesso é uma falhada sentimental. O filho da empregada aspira a realizador, mas não foi além de recepcionista. A irmã carrega sobre si o ressentimento fraternal. Durante os dez dias em que decorre a história, todos estes falhanços se vão revelando, descosendo e enredando, num guião bem urdido e subtil. Quando cá esteve, a realizadora explicou que talvez seja esta a marca de um filme europeu: não se pode resumir em duas linhas como os guiões americanos. Porque há túneis, portas secretas que tocam as pessoas noutros nervos. Agnès Jaoui é, ela própria, uma figura singular, esforça-se por falar português numa peculiar salsada entre o espanhol e o sotaque brasileiro. Adora línguas, confessa. Viveu três meses no Brasil, durante o processo de adopção de dois meninos, adora cantar bossa-nova e fado, achou a exposição da Amália «muito legal». E perante a audiência, na ante-estreia, entoa: «Quando a tristeza me invade...» E a plateia riposta: «Canto o fado...» Jaoui exulta. «Eu estava ‘em ganas’ para vos ouvir cantar».

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