terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Woody e as mulheres

Vicky Cristina Barcelona, Woody Allen

Tudo o que você queria saber sobre o sucesso de um cineasta baixote, neurótico e de grandes óculos pretos com as mais belas actrizes do mundo. E nunca teve coragem de perguntar...



Woody Allen está deitado num sofá. Com um pequeno microfone na mão (nos anos 70 era assim) dita para um gravador uma ideia para um conto sobre pessoas em Manhattan «que constantemente se metem em problemas desnecessários e neuróticos porque isso as impede de pensar nos problemas insolúveis e aterradores do Universo»... Depois, tenta ser optimista, e enuncia uma lista de coisas que fazem a vida valer a pena: Groucho Marx... O basebolista Willie Mays... O segundo movimento da última sinfonia de Mozart, Júpiter... A gravação de Potato Head Blues de Louis Armstrong... Filmes suecos, claro... A Educação Sentimental de Flaubert... Marlon Brando , Frank Sinatra... Aquelas incríveis maçãs e peras de Cézanne... o caranguejo de Sam Wo... a cara da Tracey... E aqui Allen faz pausa e entra a Rapsódia em Azul de Gershwin que acompanha toda a corrida da personagem pelas ruas de Manhattan. Isaac, o guionista quarentão, com duas ex-mulheres e 16 anos de psicanálise no currículo, corre em busca de Tracey (Mariel Hemingway), a namorada de 17 anos. «Ando com uma rapariga ainda faz trabalhos de casa», comenta Isaac. «Nabokov está aí a rir-se algures», diz Diane Keaton. Mas Tracey tem um avião para apanhar, é um final à Casablanca, eles não ficam juntos. Terão sempre Paris, como Bogart e Ingrid. Que é como quem diz, terão sempre Nova Iorque. E este pequeno excerto final de Manhattan (1979) condensa tudo aquilo que foi a filmografia de Woody Allen, ao longo destas quatro décadas, desde o argumento de O Inimigo Público (1969), até Vicky Cristina Barcelona (2008), a comédia que se estreia, enfim, em Portugal (quinta, 22) e reúne Scarlett Johanson, Penélope Cruz e Rebbeca Hall na cidade catalã.

As angústias existenciais, o humor, o judaísmo e a religião, a música, a literatura, a psicanálise, o sexo, a insatisfação no casamento, a filosofia, o sentido da vida, todo o universo Alleniano comparecia naquele final de filme na ilha nova-iorquina rebocada a preto e branco e a Gerswin. Sobretudo o seu amor pelo cinema, o seu amor pelas cidades (primeiro, a sua, Nova Iorque, depois Londres e finalmente Barcelona), o seu amor pelas mulheres... E elas (primeiro, as suas, Diane Keaton e Mia Farrow) foram tão marcantes que a sua filmografia se pode dividir na era-Keaton (anos 70), na era- Farrow (anos 80), e na era- Sacarlet Johansson (anos 2000) - a actriz entrou nos seus últimos três filmes, embora não já no seguinte, Whatever Works (com estreia a anunciar).
Com três jovens actrizes, altamente cotadas na bolsa de valores da beleza de Hollywood, Vicky Cristina Barcelona podia ser o filme com mais cromossoma X da carreira de Allen, ou pelo menos o mais erótico. Scarlet, Penélope, e Rebecca namoram-se à vez (e em simultâneo) pelo pintor catalão Javier Barden, que conduz o seu próprio avião privado (que ideia fará Allen dos artistas ibéricos?). E depois há o, já célebre por antecipação, beijo lésbico entre Johanson e Cruz. Mas, apesar de toda a sustentável leveza desta comédia, solarmente habitada por estas actrizes, é demasiado redutor olhá-la como um exercício de voyeurismo tardio ou geriátrico: «Tinha à minha disposição estes actores que são sexualmente carismáticos. E posso ter levado a situação ao voyeurismo , o que se justifica», comentou Allen, 73 anos, em entrevista, aquando da estreia em Cannes. «Mas foi muito, muito moderado».

Náufrago de Édipo
Woody Allen não foi desde sempre um grande escritor de mulheres. Na sua fase puramente humorística, as personagens femininas eram quase decorativas, e rasavam a lisura do estereótipo. Depois de se libertar, muito litigiosamente aliás, de um primeiro casamento, Woody entrega alguns destes papéis à sua segunda mulher, Louise Lasser (que em dois anos se tornou «ex»), em Bananas (1971) ou em O ABC do Amor (1972). No entanto, o temperamento maníaco-depressivo da actriz haveria de o inspirar para compor personagens com mais espessura. Assim surge no planeta Allen este recorrente tipo de mulher neurótica, atraente mas que se auto-deprecia, que se afunda em valiuns e comprimidos para dormir, que passa o tempo a caminho do consultório do analista, ou de mais uma audição ou de uma galerias de arte. Almas sensíveis e artísticas, muito tchecovianas, com um qualquer talento oculto à espera de se revelar.

Antes de conhecer Diane Keaton, admitiu o próprio, escrevia sempre sob o ponto de vista masculino. Foi, em 1969, durante a encenação da sua peça Play It Again, Sam (que mais tarde Herbert Ross transformaria em filme) que surgiu esta estreante, vinda da Califórnia para estudar actuação em Nova Iorque. O grande ponto alto do seu currículo até aqui era ter sido a única actriz que conseguiu participar no musical hippie, Hair, sem se despir. No final de Bananas, a relação deles já tinha terminado, mas a parceria profissional continuou, e formaram um dos grandes casais da história do cinema. Sobretudo em Annie Hall (1977), considerada a obra da maturidade, aquela que o catapultou para a o cinema de autor internacional, em que Woody igualou o feito de Orson Welles: o filme conquistou quatro Óscares, o de Melhor filme, Melhor argumentista, Melhor realizador e Melhor actriz. Já na altura, Allen não assiste à cerimónia. Era a noite do seu concerto semanal de clarinete.

Nestes 39 anos, e ao longo de 38 filmes Woddy foi evadido incorrigível (em Inimigo Público), revolucionário na América Latina (Bananas), robô do ano 2173 (Herói do ano 2000), espermatozóide (ABC do Amor), russo num atentado a Napoleão (Nem guerra nem Paz), homem-camaleão (Zelig), empresário de mafiosos (O Agente da Broadway), detective à força num pesadelo kafkiano (Sombras e Nevoeiro), pequeno gangster falhado (Vigaristas de Bairro), funcionário de uma companhia de seguros (Maldição do Escorpião de Jade), realizador cego (Hollywood Ending), ilusionista (Scoop), comediante/escritor/guionista, da elite intelectual nova-iorquina, em crise de criação (em vários)... Talvez o papel que melhor lhe servisse fê-lo em Stardust Memories (1980). Um cineasta de sucesso, maníaco, que lida mal com o sucesso, atormentado pelos fãs que sempre lhe perguntam pelos filmes cómicos e pelas conferências de imprensa, e que até tem direito ao seu momento 8 e ½, de puro e felliniano devaneio. A certa altura, cruza-se com um alienígena do espaço que lhe dirige a palavra: «Nós gostamos dos seus filmes. Principalmente dos primeiros, os engraçados». O início do filme, talvez deslinde esta relação singular de Allen, com a vida, em geral, e as mulheres, em particular. Ele está num comboio de passageiros sorumbáticos, velhotes, chorosos. Tudo ali dentro é cinzento, lúgubre e deprimente. De repente, pára, na outra linha, um outro comboio. Através da janela, Allen vê o interior festivo daquelas carruagens, cheio de luz, riso, champanhe e mulheres jovens e bonitas, Sharon Stone a dizer-lhe adeus... Ele ainda tenta sair da sua carruagem e apanhar o outro comboio, mas não há nada a fazer, ele já vai em andamento.

Muitas vezes, Allan Stewart Konigsberg (o seu nome verdadeiro), deve ter-se sentido no comboio errado, na sua burguesa casa em Brooklyn, na sua família judaica, que tão bem retrata nos Dias da Rádio (1987), dedicado à sua infância, rodeada de uns tios que passam a vida a dar piparotes na cabeça , e uns pais a discutir. «Apesar das minhas súplicas, os meus pais nunca se divorciaram» (Play it Again, Sam). O pequeno Allan evade-se desta existência no cinema do bairro. Mais tarde, haveria de retratar a imagem materna não de uma forma particularmente benigna. Ou com um bigode à Groucho Marx, em O Inimigo Público, ou numa crise de histeria quando o filho aventa a hipótese de acreditar em Jesus Cristo, em Ana e as Suas Irmãs, ou a pairar nos céus de Manhantan e a fazer inconfidência, em Náufragos de Édipo, no filme colectivo Histórias de Nova Iorque.

Cromossoma X
Mães à parte, as actrizes de Hollywood sempre se mostraram muito disponíveis para integrar os elencos dos filmes de Allen. Até agora, em Vicky..., foi Penélope Cruz que, assim que soube que ele iria rodar um filme em Barcelona, se dirigiu ao cineasta pedindo-lhe um papel. Woody assentiu de imediato, contou, acrescentando generosamente: «Antes que ela mudasse de ideias». Não mudaria, com certeza. Allen devolveu-lhe a beleza na tela, que só com Almodôvar tinha alcançado. Porque até para fazer com que fique bonita uma actriz bonita é preciso ter talento.

Meryl Streep, Maddona, Jodie Foster, Shelley Duvall, Angélica Huston, Mira Sorvino, Helena Bonham Cárter, Natalie Portman, Drew Barrymore, Júlia Roberts, Charlize Theron, Uma Thurman, Helen Hunt, Christina Ricci... Todas elas já desfilaram pelos seus filmes, e sabem que Woody tem o selo de qualidade. A maior parte das suas principais intérpretes femininas foram nomeadas para os Óscares – a grande esquecida foi Mia Farrow. Desde a bergmaniana Comédia Sexual Numa Noite de Verão (1982), entrou em 13 filmes seus. Só em Maridos e Mulheres (1992), é que os dois encarnam um casal. Na vida real, protagonizaram o mais extravagante romance, cada qual no seu luxuoso apartamento, com o Central Parque pelo meio. Ex-mulher de Frank Sinatra e filha de Maureen O’Sullivan - conhecida por ser a Jane de Tarzan, e pela sua religiosidade irlandesa, que a fez baptizar a descendente com um nome tão impronunciável para um americano como Maria de Lurdes (nome verdadeiro de Mia) -, a actriz foi a musa mais constante do filmografia de Allen. Ana e as Suas Irmãs (1986), foi rodado no apartamento real de Mia, e em fundo, como figurantes, vêem-se os filhos dela, e os adoptados na altura (hoje tem 14 filhos, nove adoptados). Entre eles pode-se ver a pequena coreana Soon-Yi que irá entrar para a história, seis anos depois, quando rebenta o escândalo que alimentará a sofreguidão de certa imprensa durante meses. Allen tem um caso com a filha adoptiva de Mia, é envolvido num processo de acusações sórdidas, perde a custódia dos filhos do casal. Ele que sempre dissera que a América era um etsranho país por vibrar mais com casos reais como o de O J Simpson e o de Mónica Lewinsky do que com uma peça da Broodway, tem oportunidade de o comprovar na pele. Entretanto é ilibado da acusação de abusos sexuais sobre outro dos filhos, casa-se com Soon-Yi, o escândalo não afecta a sua produtividade, mas não se liberta reputação. Agora não só é maníaco, anti-social, hipocondríaco, e paranóico como também sexualmente pervertido ou incestuoso.

Até então escrevera para papéis femininos tendo uma Diane ou Mia em mente (também escreveu a pensar em Dianne Wiest)...«Eram mulheres que conhecia, o que me permitia escrever coisas que eu sabia que elas poderiam fazer».

Sem Mia, em O Misterioso Assassínio em Manhattan (1993), Woody resgata do seu baú de actrizes e amantes, Diane Keaton. Nesta revisitação de Janela Indiscreta, cheio de planos sequência (quase indiscretos como a janela), a dupla reaparece na tela com a química de sempre, como se não se tivesse passado um hiato de 15 anos. Para a actriz foi o seu último filme inteligente. A partir daí foi assídua numa série de blokbusters-pipoca que nunca lhe devolveram o brilho.

Na década de 90 Woody Allen improvisa. Escreve, entrega o guião à directora de casting que lhe vai fazendo sugestões, e mostrando fotografias e filmes... Até que conheceu Scarlet Johanson, sua nova inspiradora da era pós-NY. Mas está cada vez com menos paciência, só a imperturbável Soon-Yi parece contemporizar com as suas idiossincrasias, os actores desorientam-se com o seu mutismo no plateau, as suas aparições investido nas personagens, intelectuais com um estilo de vida não ostentatório, não coincidem com as exigências de pop-star e as limusines em que sempre viaja. Scarlet já foi uma espécie de seu super-ego em versão feminina, em Scoop, e Woody nunca almoçou ou jantou com ela. «Não tenho interesse na vida real. Todos são muito agradáveis, mas não tenho vida social com os meus actores». O que ele quer é filmar e seguir para casa para o seu trabalho, a sua mulher, as suas crianças, o seu clarinete. Sempre que os jornalistas o abordam sobre o seu filme em cartaz, ele parece já estar desinteressado desse, com a cabeça no próximo.

Os ares latinos de Barcelona desanuviaram-lhe o nevoeiro que cobriam os anteriores filmes londrinos (Match Point, Scoop e Cassandra Dream’s), muito mais sombrios. Vicky Cristina Barcelona, é um filme solar, que se anuncia logo no genérico pela música da banda Giulia & Los Tellarini, que editaram em 2007, o primeiro CD que se chama Eusébio. As duas turistas americanas (Johanson e Hall) do título, chegam de férias a Barcelona. Uma é loura, anda em busca de experiências amorosas e de encontrar o seu talento (o seu leitmotiv de sempre), a outra é morena, muito certinha, tem casamento marcado, e uma dissertação de mestrado sobre cultura catalã. O caos e a ordem unidas numa amizade, que não é balançada pela proposta frontal de Javier Bardem de irem os três para a cama, em Oviedo. O que a uma soa a atrevimento, a outra a aventura. O triângulo amoroso torna-se quadrado, quando entra em cena o furacão-latino Penélope, ex-mulher e grande inspiração do artista sedutor. Barcelona, terreno para toda a possibilidade de combinações amorosas, é pintada com cores quentes, muito vinho, Gaudi e guitarra flamenca. A arquitectura de Gaudi é usada para descrever o género humano. Sempre criaturas tão complexas e aparentemente instáveis que mal se compreende como podem ser funcionais. Há também o pai do pintor que é poeta, mas não quer mostrar a beleza dos seus poemas a um mundo que não o merece. O lado mais amargurado de Allen está presente, até nesta frugal comédia. Afinal, parece ser a mensagem, todos temos de escolher: ou a solidão ou o tédio. Mesmo com uma voz off narrativa (que nos filmes do Woody Allen fica sempre bem), mesmo com um cenário-cidade montada com clichés turísticos (Barcelona não é uma cidade-personagem, como o título deixa a entender, ou como já o foi Manhantan), mesmo com o beijo filmado em slow motion... Com os filmes do mais célebre dos nova-iorquinos continua-se a padecer do «síndrome-Cecília». Como a protagonista do Rosa Púrpura do Cairo: dá-nos sempre vontade de saltar para dentro do ecrã. Os filmes de Woody Allen... Mais um item a acrescentar à lista de coisas que fazem a vida valer a pena.

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