segunda-feira, 16 de junho de 2008

A Visita da Velha Senhora

Alexandra, de Alexander Sokurov




Podia ser uma Alice da terceira idade, que caiu no buraco do coelho e saiu numa outra dimensão, que não tem nada de maravilhoso, antes de tenebroso. Toda a hora e meia de filme se condensa numa frase: uma avó vai visitar um neto à guerra. Ponto. É esta a story line minimalista de Sokurov. Uma velha senhora, deambulante, como a forma de filmar do realizador, no ambiente masculino, despigmentado e enevoado de tanto pó, de casernas deploráveis num acampamento militar na frente de batalha. É na Tchetchénia, a rodagem decorreu em Grozny, mas não interessa, podia ser outra guerra qualquer, noutro país qualquer, noutro século qualquer. Como a guerra dos 100 anos de Brecht, em Mãe Coragem. Esta é uma avó de todos os tempos que vai visitar um neto que está na guerra há demasiado tempo – todas as guerras duram demasiado tempo. Ela aparece ali, deslocalizada, fora do seu mundo, arrasta os pés no caminho pedregoso habituado a mais ágeis passos, às mais robustas solas das botas cardadas. As pernas são trôpegas demais para trepar aos tanques, o corpo cansado deixa-se tombar nos assentos, como um fardo. Ela é uma avó, velha, cansada, mas sólida. Tem qualquer coisa da altivez da Miss Daisy, tem qualquer coisa da desorientação benigna da velhinha do Quarteto Era de Cordas, tem o universalismo brechtiano de que já se falou, a inanição de fim de vida de Tchecov, tem algo de profundamente russo, que talvez nos escape: É uma baboucka... Uma personagem incrível, em suma, compósita sim, mas diferente de tudo. Sokurov quis fazê-la interpretar pela famosa cantora lírica russa Galina Vishnevskaya (viúva do violoncelista Mshislau Rostopovich), e ela mantém, octogenária, neste ambiente de hostilidades (assim mesmo com s) a postura de diva. Às vezes olha para aquele mundo, os interiores das kalashnikov e dos tanques (que cheiram mal, a homem e a ferro), com uma curiosidade quase infantil. Ou com a apatia serena da idade. Outras vezes, roça a arrogância, até quando é amparada e conduzida pelo braço. É a arrogância de quem tem mais alma do que corpo. Ela emite constantes sussurros e lamentos em meia voz, como as pessoas velhas costumam fazer, uma espécie de voz interior, constantemente a sair cá para fora.

E é um mundo desalmado, este onde Alexandra vai parar. De uma palidez inóspita. Tudo ali é pardo, deslavado, monocromático – até os soldados, camaleões no seus camuflados. Todo o filme é contido, sóbrio, atmosférico – e há sempre, ou quase sempre, uma música clássica de fundo, em volume baixo, que não nos deixa desfocar do absurdo, do estranhamento. O estranhamento daquele amor ... (não há adjectivo para a relação avó neto, podia ser bimaternal ou coisa assim...)..., ali, na linha da frente da batalha. De onde partem as missões, aonde chegam exaustos e mal-cheirosos os homens. Não há um tiro nesta guerra, apenas o pó dos rescaldos, os olhares pesados dos ocupados, a solidariedade das mulheres de lenço, e os escombros descarnados de uma Tchetchénia no osso. E no meio de toda esta pós-violência, o amor de uma avó que quer rever o neto, e saber como ele está, como vive, como se alimenta, como se lava, e quando é que vai casar. Tudo num plano de contenção, de sobriedade, de ausência de grandes toques físicos – apenas as mãos rudes, de unhas tingidas, do capitão neto a desfazer as tranças prateadas da avó, como dantes costumava fazer. A melancolia é avassaladora. Sobretudo na cena final, em que, por entre carros de combate, a avó Alexandra arrasta o saco das compras naquele inacessível chão.

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