quinta-feira, 3 de abril de 2008

Condomínio fechado

REC, de Jaume Balagueró e Paco Plaza




REC é umas espécie de «filme cocktail»: deita-se uma dose de falso realismo à Blair Witch Project, junta-se uma história de zombies, agita-se bem e serve-se numa taça quotidiana de reality show televisivo. Mas antes o barman tem que fazer uma exibição à vista dos clientes, sacudir bem os braços, deitar do alto os líquidos coloridos, fazer malabarismos com o shaker, como os japoneses do sushi. Foi mais ou menos esta a estratégia da dupla de realizadores espanhóis. E a parte do malabarismo atrás do balcão também pertence ao filme – pelos menos, ao sucesso que ele alcançou nas bilheteiras e festivais (foi duplamente premiado no Fantasporto). Antes de REC estrear, circulou um teaser promocional que, sem exibir uma única cena do filme, mostrava o público que o via. Como Bergman fez uma vez aos espectadores na ópera (salvo as quilométricas distâncias). E aí temos uma plateia literalmente aos saltos, a sobressaltar-se de susto, a soltar gritos estridentes como se estivessem a meio de um looping de montanha-russa.

É uma manobra de marketing legítima, diga-se. A sugestão faz parte da alma dos filmes de terror. Vale sempre mais aquilo que se esconde do que aquilo que se mostra. Aliás, tem mais graça se o embrulho vendido não corresponder exactamente ao conteúdo do produto. E deve ser no género de terror que exige um pacto mais firme com o espectador. Os realizadores cumprem a sua parte: gerem eficazmente atenção e a tensão, acertam nos esmerados prazos do susto, nos ritmos, etc... Talvez o espectador é que não adira tão bem ao papel que lhe compete: não que não dê alguns habilitados saltos na cadeira, mas à medida que o filme avança vai perdendo a inquietação. Irreversivelmente.

Começa bem. Uma equipa de televisão de Barcelona a fazer um directo num quartel de bombeiros. Tudo é visto através da objectiva do operador, com a tremida câmara à mão, cortes, planos desfocados e desenquadrados. Rompe-se o contrato de neutralidade com a câmara. O que ele filma, quando a luz está no REC, é o que nós vemos. E, em vez do vídeo amador do Blair Witch Project, temos uma equipa de televisão e o seu reality show em curso. Primeiro não se passa nada. E o filme explora bem estes momentos de pré-tempestade. É suposto nunca se passar nada antes de tudo acontecer. Enfim, toca o alarme e os bombeiros são chamados para uma emergência nocturna. O operador, que irá permanecer numa total invisibilidade (só lhe ouvimos a voz) e uma jornalista acompanham a operação. Uma idosa grita num prédio cheio de vizinhos em alvoroço. Tudo isto é seguido no mesmo registo realista da objectiva televisiva que, afinal, somos nós.

Mas, se na primeira parte do filme domina a sugestão. Na segunda quem ordena é a imposição. Entrámos no reino do óbvio. E vemo-nos, mais uma vez, no meio de um daqueles enredos de zombies, cuja a lógica é sempre a mesma dos miúdos na apanhada. O que é apanhado passa a apanhar. Ou seja, se alguém leva uma dentada, logo procura morder o próximo. E assim por diante, escada abaixo, escada acima.

A única diferença do velhinho A Noite dos Mortos Vivos é que naquele tratava-se de não deixar os zombies entrar dentro de casa. Aqui o objectivo dos mortais é sair de um condomínio fechado. Selado pelas autoridades, por vagas e desconchavadas razões sanitárias, que se prendem com um vírus contagioso. Primeiro a câmara corre atrás da acção, depois, claro, foge dela. Há alguns momentos interessantes, como os das entrevistas jornalísticas aos condóminos e suas respectivas poses perante as gravações televisivas. Ou como a insistência de um polícia a tapar a objectiva - mas aqui o espectador não aprecia o zelo e está pelo voyeurismo. Também se tira algum proveito da suposta utilização do reward ou da luz nightshot da câmara.

Muitos cadáveres reanimados depois, quando o corrupio de zombies pela escadaria começa a tornar-se cansativo. O argumento ainda faz saltar um último coelho da cartola do susto, e introduz-se, à pressão, uma santinha portuguesa (porquê portuguesa?), ainda mais sobrenatural, que os sobre-humanos zombies, e que habita num sótão. Mas nem os santos desta casa fazem milagres, nem a originalidade do filme consegue erguer-se acima rés-do-chão.

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