quinta-feira, 30 de agosto de 2007

'Monstrucidade'

A Criatura, de Bong Joon-Ho


E logo às primeiras cenas nos apercebemos de que estamos perante um filme, também ele, mutante, absolutamente anfíbio, geneticamente manipulado pelo seu genial realizador. The Host é, sem dúvida, o filme mais transgénico do ano


Mais do que um erro ortográfico, este título é uma fusão, uma anexação abusiva, um ‘dois em um’ vocabular. A cidade é Seul. Seul e seus porões (os esgotos, os encanamentos, os subterrâneos, os debaixos de pontes são os porões das cidades).

O monstro é... Bem, o monstro também é uma anexação, uma fusão, um ‘tantos em um’. Tão múltiplo, tão macedónico, tão aglutinador, tão anfíbio quanto o fantástico filme The Host (A Criatura, na sempre criadora re-intitulação das versões portuguesas), a terceira longa do sul-coreano Bong Joon-Ho.

E este é um filme que tem uma cidade, já se disse, e um monstro que entra directamente para a prateleira dos monstros mais célebres da história do cinema. Tão único – e ao mesmo tempo tão composto. Porque o monstro de Joon-Ho condensa em si todos os monstros que já vimos desfilar nas telas. Ele emerge no rio Han, misterioso como um monstro de Loch Ness. Tem um apetite assinalável, igual só talvez ao que se encontra nas sequelas jurássicas, em que os dinossauros aviam humanos, como se fossem hambúrgueres com pernas. Também é Alien, com a sua dupla, viscosa e trituradora mandíbula. Mas também é King Kong, quando suspende as vítimas com uma delicadeza flutuante. Também tem qualquer coisa dos monstros do Senhor dos Anéis, na perfeição do realismo digital. Ou de Jabba the Hutt de Star Wars, na sua adiposidade transbordante e repolhuda. E de, claro, Godzilla (a associação mais óbvia)...

Quando se move, o design ondulante e desengonçado do monstro faz lembrar um cocker a correr, aqueles cães com grandes orelhas e pêlos. E no entanto, toda a criatura é escorregadia e rastejante. Toda ela é humidade e escamas.

O é um ser mutante, o trazido pelo realizador e argumentista sul-coreano. O filme tem um início muito série B, em que um médico legista americano (saliente-se o americano), com um ar maquiavélico, dá ordens para que o seu assistente derrame pelo cano abaixo, e consequentemente para o rio da capital, uma quantidade industrial de líquidos tóxicos – o filme só começa verdadeiramente depois do travelling lateral sobre centenas e centenas de frascos destes químicos que hão-de gerar a tal criatura. E logo às primeiras cenas nos apercebemos de que estamos perante um filme, também ele, mutante, absolutamente anfíbio, que não é carne nem peixe – e isso é que o torna único, geneticamente manipulado pelo seu genial realizador. The Host é, sem dúvida, o filme mais transgénico do ano.

E por falar em transgenia, desde logo se nota como o ADN deste filme foi modificado. E como transporta material genético de vários géneros de filmes. Para começar, Joon-Ho apresenta-nos o monstro antes do primeiro quarto de hora de filme, em plena e radiosa luz do dia, e em espaço aberto. Portanto, lá se vão as convenções dos filmes de monstros e de terror que ditam que os seres se sugerem, primeiro uma garra, um ronco, uma alusão, um clima... Não, ali está ele, no seu esplendor, tudo às claras, as cartas na mesa: o monstro e suas devoradoras intenções. É notável o plano sequência do pânico colectivo nas margens do rio, com uma massa humana em fuga, a ser engolida, atropelada, esquartejada – talvez só comparável aos da Guerra dos Mundos de Spielberg. Mas não é só pela versão de Wells que se convoca Spielberg para aqui. The Host é um misto de filme de terror e de drama familiar, muito ao estilo dos que o realizador americano gosta: uma família disfuncional (só com pais, não há mães) que se une em torno de uma criança. Aqui há um avô que gere uma banca de comidas (que em repugnância só são comparáveis ao próprio monstro) nas margens do rio e que tem três filhos, uma medalhada no tiro ao arco, um licenciado desempregado, e outro, meio atrasado mental, que adormece em ocasiões impróprias e teima em não pregar olho quando lhe enchem as veias de anestesia. Toda esta família se (dês)organiza para tentar resgatar a neta das garras do monstro. Estamos algures no meio, entre o Alien e o Little Miss Sunshine (a desastrosa tradução portuguesa era Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos), naquela peregrinação familiar, mobilizada numa carrinha decrépita em redor do membro mais novo. E as mudanças de registos e de códigos narrativos precipitam-se. The Host não se aprisiona num género, esgueira-se por entre todas as malhas. É um monster movie, mas também de ficção científica, drama familiar, horror, comédia e sátira política... Passa-se do susto ao riso, das lágrimas ao humor negro, do burlesco ao trágico, do suspense ao empolgamento, do sonho (dos bons) ao pesadelo (dos mesmo maus)... E depois ainda há umas épicas câmaras lentas. Uma banda sonora à Kusturica. Um sentido espirituoso muito asiático.

Para além de toda esta benigna mistura, o filme está cheio de conotações. Ecológicas e políticas, também. Sobretudo anti-americanas. O título em inglês, The Host, é muito mais expressivo, num país que hospeda as bases e as prepotências (e ingerências nos assuntos internos) dos norte-americanos. E as suas paranóias. Na história, os militares estão é preocupados com um vírus (imaginário?) que o monstro hospeda. E põem o país em quarentena (não esteve sempre?). Como se um monstro cheio de apetite não bastasse, a família tem de enfrentar os poderes oficiais que empecilham o resgate da criança, e ainda os descredibilizam, infantilizam e ridicularizam...
E nesta geografia urbana, molhada e subterrânea, as batalhas não se vencem com armas de destruição maciça. Mas com elementos primordiais: fogo, lanças, flechas e pedras... (onde é que nós já ouvimos isto?). Bem, certo é que, por incrível que pareça, saímos mesmo com uma sensação de felicidade de dentro deste filme. Tão incatalogável como as sociedades de hoje. E as ideologias.

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