sexta-feira, 20 de julho de 2007

Teoria do caos

Por Culpa de Fidel, de Julie Gravas


Por Culpa de Fidel é um filme sobre a ordem e o caos. Sobre uma criança a tentar reconstruir outro mundo sobre a derrocada do anterior
Uma criança a observar atentamente um escultor que se debate com um bloco informe de pedra. O homem esculpe, a criança repara. Até que, aos poucos, saído do escopro do artista, se começa a presumir um cavalo. Assombrada a criança questiona: Como é que sabias que havia um cavalo escondido dentro dessa pedra?

Esta história não tem nada a ver com o filme Por Culpa de Fidel, de Julie Gravas. Mas esta história tem tudo a ver com o filme Por Culpa de Fidel. Em que é que ficamos? Ficamos pela imensa perplexidade infantil face ao assombroso mundo dos adultos. E tudo aquilo que eles sabem. Ou não sabem – mas elas pensam que sabem.

Por Culpa de Fidel conta a história das convulsões políticas dos anos 70, observado de uma altura de um metro e pouco. Anna é uma menina parisiense, de nove anos, bem comportada, que estuda num colégio de freiras. Tem um irmão mais novo muito irrequieto, e este é talvez a única fonte de turbulência dos seus dias. Porque de resto, tudo é previsível, como num casamento – falamos da cerimónia –, hão-de abençoar-se os noivos, lançar-se arroz, fazer-se a festa, partir-se o bolo. E é assim que se inicia o filme de Julie Gravas. Com a pequena Anna a passear com o véu da noiva, por entre as conversas dos adultos. Os dias passam-lhe tranquilos. Porque no mundo onde se move tudo está no seu lugar. Ela sabe o que vai acontecer no dia seguinte. Sabe que nas aulas todas as meninas se devem levantar quando entra uma professora freira na aula. Sabe que a empregada a irá buscar à escola. Sabe que tem de tomar banho antes do jantar. Não sabe os mistérios do mundo porque estes lhes são decifrados no catecismo. Anna vive na ordem. Vive fortificada dentro das suas construções. Protegida por ameias, autoridades, rotinas, disciplinas, obediências... Até que um dia o tumulto lhe atravessa as muralhas, como cavalo de Tróia. A culpa é dos pais que se tornaram apoiantes da revolução na América Latina e da presidência de Salvador Allende, no Chile. A culpa é dos camaradas barbudos que lhe invadem a casa em reuniões fumarentas. A culpa é dos comunistas que, diz-lhe a avó, «querem ficar com as nossas coisas, as nossas terras, os teus brinquedos». «A culpa é do Fidel», diz-lhe uma empregada, exilada cubana.

Esta é a primeira longa-metragem de Julie Gravas, filha do realizador grego Costa-Gavras. Tinha 11 anos quando o pai filmava Missing (1982), a história do pai, americano conservador (Jack Lemmon) que viaja até ao Chile em busca do filho, assassinado pelo regime de Pinochet. Foi nessa idade que Julie soube o significado da data de 11 de Setembro. O outro 11 de Setembro, o de 1973: quando o golpe militar liquidou o presidente eleito Salvador Allende e a revolução em curso.

Julie Gravas faz um filme sobre o compromisso, mas quase nada fala de ideologia. Faz um filme sobre uma época convulsionada e luminosa, sem nostalgias manipuladoras. Faz um filme sobre a perplexidade infantil, mas sem condescendências piegas. Talvez muitos filhos dos anos 70 se revejam neste Por Culpa de Fidel. Sobretudo aos que, também por cá, viveram uma infância impregnada de revolucionários furores, cheia de prisões, separações, manifestações, bandeiras vermelhas, canções, agitações... Aqueles, para quem o mundo veio com outro manual de instruções que elucidava tudo. Mesmo sem as respostas fechadas da religião, para as crianças daquele tempo tudo pareceu claro, e inequívoco. Os maus estavam identificados. Os bons tinham, claro, boas intenções. Tudo fazia sentido. E os amanhãs cantavam. Mesmo.

Por Culpa de Fidel é um filme sobre a ordem e o caos. Sobre uma criança a tentar reconstruir outro mundo sobre a derrocada do anterior. Anna vê as suas muralhas transpostas. Os pais estão demasiado empenhados politicamente para cumprirem as rotinas da semana e os rituais de domingo. O pai deixa crescer a barba, passa temporadas na América Latina, a apoiar os movimentos revolucionários e os exilados de Franco. A mãe torna-se feminista e activista pró-aborto. Da casa com jardim, a família muda para um apartamento, troca de empregada, o rato Mickey e a Branca de Neve são fascistas. Mas Anna é uma resistente. Reage contra tudo o que possa pôr em causa a solidez da sua ordem. Ela quer manter o seu universo devidamente organizado. Tenta anular o caos com o mesmo zelo com que todas as crianças procuram alinhar os lápis por cores ou exigem, ao deitar, a mesma história, sempre com o mesmo final.

Por isso, resiste. Quer manter-se no colégio de freiras, entristece-se quando a dispensam das aulas de catecismo, rebela-se contra as refeições preparadas pelas diferentes empregadas... Ao contrário do irmão que a tudo se adapta – ele ainda não estava pré-formatado. Depois há a história de uma raposa que rói a pata para escapar da armadilha, mutilada mas livre, uma manifestação filmada na perspectiva da cintura para baixo, cheia de pernas, gritos, fumo e confusão... Há a canção chilena Venceremos cantada em grupo. E o comunismo e a partilha explicados através de uma laranja. Ela prova um gomo: tem o mesmo gosto. Os pais ensinam-lhe o que é espírito de grupo. Desorienta-se, não percebe bem: na escola «vota» na resposta errada, com a maioria, ciente de que está errada. Ela quer saber: «Como se distingue o que é espírito de grupo do que é carneirada?»

Crescer é largar a ordem e saltar para o caos. É a ordem natural da desordem. A ordem está arrumada com um definitivo ponto final. O caos está aberto, pede continuação, porque nada está acabado, porque tudo está incompleto e disforme. O caos nunca é um fim, mas um princípio de qualquer coisa. Como o bloco de pedra de mármore antes do escultor lhe tocar. Anna cresce, aprende a renunciar, está num colégio público, misto, sem freiras a vigiar nem brincadeiras ordenadas. O caos.

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