quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Perdas & Danos

Antes Que o Diabo Saiba Que Morreste, de Sidney Lumet


Antes que o Diabo Saiba que Morreste... Antes que se veja o filme... Dá para passar pelo Paraíso. Dos homens e do cinema


Há uma sala de chuto muito sofisticada, toda em tons de vermelho (como a instalação do artista Cildo Meireles), situada nas altitudes nova-iorquinas. Há um rapaz, com ar de gueixa andrógina, sempre de roupão e cara oculta por uma madeixa, que presta os seus intra-venosos serviços. E há um Philip Seymour Hoffman, executivo de Manhattan, que sustenta um vício e uma mulher (Marisa Tomei), que parece que se enganou na sessão e veio saída da tela da sala ao lado, onde ainda passam os filmes mais desaparafusados do verão, cair neste thriller do veterano e octogenário Sidney Lumet, Antes que o Diabo Saiba Que Morreste... (estreia-se quinta, dia 11).

E por falar em desaparafusamentos, desencaixes e peças soltas, há um breve e teatral monólogo de Hoffman, em que ele se define a si próprio: «Não me consigo juntar. Não sou a soma das minhas partes». Claro que a personagem já estava tomada pelos devaneios da heroína, mas acabou por traçar o mais lúcido diagnóstico geral do filme. Não se consegue juntar, o argumento não se aparafusa a algumas personagens inúteis e desoladoramente vácuas, e deixa soltas muitas pontas. A excelência de umas interpretações não se coaduna com a pouca consistência de outras. O contexto social é tão ignorado quanto os diálogos são estereotipados (e muito americanos: veja-se aquele em que o casal na cama conclui que o Rio de Janeiro é um sítio bom para se viver...). O plot não encaixa no título nem na premissa e, sobretudo, a soma das boas partes (algumas) do filme não dá conta certa. Pelo menos, aquela, cheia de números redondos, que esperávamos de um realizador responsável por clássicos da história do cinema, como Dog Day Afternoon (1975) ou 12 Homens em Fúria (1957).... Mesmo assim, o filme chega-nos com um ano de atraso, e já com um currículo a abarrotar de extremosos elogios, muitos condicionados pelos reflexos pavlovianos que provoca nos críticos o nome de Sidney Lumet.

Muito a leste do Paraíso
O título (uma das partes boas do filme) é baseado num provérbio irlandês que diz «Podes estar meia hora no Paraíso, antes que o Diabo saiba que estás morto». A história parte de dois irmãos, vergados pelas dívidas, que partilham uma vida irrisória, casamentos desfeitos e a mesma mulher. E começa quando o mais velho (Hoffman) sugere ao mais novo (Ethan Hawke) um crime perfeito, fácil e indolor. À prova de bala e de prejuízos: assaltar a joalharia suburbana dos próprios pais, que não sairiam prejudicados, pois receberão a compensação do seguro. Claro que o crime redundará na maior das imperfeições, e traídos pelo fatalismo próprio das tragédias, os dois irmãos são arrastados para uma sucessão galopante de percas e danos que eles, na sua condição de homens banais e patéticos, não estão em condições de controlar. Apenas dão um piparote no primeiro dominó, e assistem ao desabamento em linha de série das restantes peças das suas vidas. A resgatar do espírito do cinema dos anos 70, Lumet alterna o seu estilo escorreito, às vezes um pouco convencional, de filmar, com o brilhantismo de algumas cenas. E envolve (o argumentista é o estreante Kelly Masterson) toda a narrativa deste thriller neo-negro numa cronologia quebrada, cheia de regressos no tempo, inclusive ao local do crime, sob diversas perspectivas. Supostamente a cada nova abordagem, uma outra queda de dominó se prevê, e já se antecipa a linearidade dos tombos. Só que nem sempre Lumet consegue escapar à redundância da repetição, às vezes forçada e meramente formalista.

Philip Seymour Hoffman cumpre aquilo que esperávamos dele. Mantém-se à sua altura, mais que comprovada, de excelente actor (um dos melhores desta nova geração), mas também não se ultrapassa. Ethan Hawke, em mais um papel de homem perturbado, cheio de tiques, um típico looser dos filmes americanos, esforça-se. E Marisa Tomei desfaz qualquer benefício da dúvida quando, na cena em que abandona o marido Hoffman, resume toda a sua fúria e indignação, num «oh» agudo.

Nesta escalada do descontrolo, os défices financeiros que presidiamà decisão do assalto passam para segundo plano. Logo emergem maiores défices afectivos e relacionais que ainda causam maiores rombos. Com ressonâncias bíblicas e freudianas, a família caminha para a inevitável auto-imolação, os dois irmãos defrontam-se como Caim e Abel, e o pai tem os mesmo genes. No meio dos escombros conjugais, a raiva contida, a explosão silenciosa mas assustadoramente visceral do marido abandonado Hoffman. Ele destrói com uma calma metódica e sinistra o seu apartamento. E entorna lentamente uma jarra de pedras decorativas, que ficam espalhadas em cima da mesa. Ele não se sente a soma das suas partes. Lembram-se?

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