terça-feira, 22 de julho de 2008

Partida! Lagarta (mesmo assim, na versão larval)... Fugida!

Brincadeiras perigosas, de Michael Haneke



Brincadeiras Perigosas é um filme-jogo. Há um jogo de golfe que se anuncia. Há um jogo doméstico de se adivinhar a ária que toca no leitor de CDs do carro. Há um jogo de dois rapazes louros, extremamente educados, que consiste em sequestrar, torturar, humilhar e matar pessoas porque sim ou porque não? – que é a motivação última de todos os jogos. Há o jogo da provocação e interpelação ao espectador. Há o jogo pessoal do próprio Haneke que se auto-propôs esta assumida e redundante jogada: a de realizar um remake cena a cena (quase shot by shot) do seu germânico filme de culto Funny-Games. Só que agora para americano ver...

Foi justamente esta a motivação do realizador austríaco, explicou ele nas entrevistas. Este ensaio sobre a mais niilista e desonerada das violências foi originalmente concebido para ser exibido perante audiências americanas. A segunda jogada seria seguir as mesmas passadas, pegada por pegada, que dez anos atrás. O que é muito mais difícil, também explicou. Um exercício de masoquismo, classificou, o de estabelecer estritas regras de jogo para a realização do filme: mesmo que não gostasse de uma cena ou a julgasse dispensável, o desafio era mantê-la.

E com este acrescentamos mais um jogo ao filme jogo. Segue-se outro: o de descobrir as diferenças, que são poucas mais do que as do elenco e a da língua. Ambos os filmes começam com um travelling aéreo sobre um jipe (mais claro na versão antiga) que segue por um auto-estrada com um barco a reboque, suavemente, como a música de Handel. De súbito, o solavanco heavy e satânico da música composta por John Zorn. A actriz alemã não é a Naomi Watts, que já foi Kong girl ou actriz lynchiana em Mulholland Drive, mas, em compensação, é muito mais real. Desta vez é um (muito mais apagado do que se suporia) Tim Roth que encarna o pai de família, originalmente interpretado pelo excelente Ulrich Muhe, o sombrio inspector da Stasi, em A Vida Dos Outros, de Florian Henckel von Donnersmarck.
É idêntica a casa de férias, o edílico lago (embora o alemão pareça menos solar), o portão branco por onde esta família acede ao local onde se jogará o seu destino. Começou o jogo. Partida, Lagarta... Fugida (generosidade que não lhes será, na verdade, concedida)

Em ambos existe um cão que desafortunadamente se chama Lucky. «É completamente inofensivo», diz a mãe. «Apenas quer brincar». Azar ao jogo. No primeiro, é um pastor alemão, no segundo um mais do tipo labrador. A sinistra dupla que faz desta família peões dos seu sádico jogo, não são tão louros na primeira versão. Vestem impecavelmente camisa e calções brancos como os jogadores de golfe, usam luvas brancas como os prestimosos mordomos britânicos. E têm aquele olhar. Um olhar angelicamente demoníaco.

Não nos é difícil imaginar esta dupla naquele feérico bar da Laranja Mecânica, de Kubrick, onde Alex e o seu gang adorador da ultra-violência e de Beethoven, bebem leite. O filme situa-se algures no meio entre o universo kubrickiano da laranja, e o hitchcockiano da Corda, em que um par, vagamente homossexual, comete um assassinato de um colega também porque sim. Porque pura e simplesmente o podem fazer.

Às vezes este par glaciarmente imperturbável chamam-se entre eles Tom e Jerry, como nos Cartoons. Outras vezes são uns apostólicos Peter e Paul.

E no meio de todos estes jogos de referências e tabuleiros, há o próprio Haneke, que acaba por quebrar todas as regras do jogo cinematográfico. Em todos os filmes (sobretudo nos americanos) há um compromisso com o espectador. O primeiro a ser quebrado é aquela regra que dita que devemos ser poupados a ver fazer mal a animais e a crianças. O realizador austríaco joga com o nosso imenso desconforto. A segunda regra deste pacto é não quebrar a ilusão, coisa que Haneke faz inesperadamente quando põe o líder da dupla a olhar para a câmara e a interpelar o espectador. Não interpela só o espectador, na verdade, ele torna-o um cúmplice voyeurista das atrocidades que estão a ser cometidas: «Se vocês não estivessem aí a ver, nós não faríamos isto».
Também as regras de género estão comprometidas. Não há cenas de perseguição. A tensão é mantida como naquele ímpio jogo em que o gato enfastiado deixa escapar o rato já estropiado, só pelo prazer de o caçar outra vez. Nesta desglorificação da violência, nada se perde tudo se joga. Seja na ponta de uma tacada de golfe ou na tecla do rewind do controle remoto.

1 comentário:

Dark disse...

Boa tarde,
Já agora coloquei um desafio no meu blog, espero que veja e dê a sua opiniao=)
Susana Freitas