quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Figura e estilo

Sinédoque, Nova Iorque, de Charlie Kaufman






Num livro muito esquecido do nobel Romain Rolland – que é o Jean Christophe, o exemplo clássico de um roman-fleuve – diz-se, a certa altura, e arriscando a memória, que a maioria dos homens morre aos 30 e tal. A partir daí, eles passam a ser reflexos de si mesmos, limitando-se a imitarem-se a si próprios. Procurando repetir, ano após anos, tudo o que fizeram, o que disseram, o que pensaram, o que amaram e o que foram, basicamente. É mais ou menos sobre isto, o filme do argumentista, e agora realizador Charlie Kaufman.

Não se trata de um filme-fleuve, não se vai da nascente à foz, como nos cinco volumes da colecção Brasil. Começa-se justamente quando o rio já vai no adro, e já se prenuncia o desaguar. Um dia a personagem principal (o magnífico Philip Seymour Hoffman), um dramaturgo de meia idade, acorda e apercebe-se que foi arrastado pela correnteza fluvial da sua vida justamente para aí, para a meia idade, a fase outonal, o princípio do fim... E logo às primeiras cenas se abre uma fresta com vista para a figura de estilo do título, sinédoque, que significa tomar a parte pelo todo ou vice-versa, mas também junção de conceitos opostos, como princípio do fim, etc...

E então chegam as doenças do corpo, as crises no casamento, o afastamento dos filhos, as desilusões, aquela insatisfação crónico, aquela angústia de ainda não ter feito e de ainda não ter criado. Algo puro e verdadeiro. E enquanto isso o tempo urge, é tarde, é tarde, é muito tarde...

Uma das expectativas (esperámos um ano por este filme) que Sinédoque, Nova Iorque gerou foi a de saber como é que um dos mais geniais argumentista destes tempos (Inadaptado, Despertar da Mente, Ser John Malkovitch) se iria desembaraçar sem a intervenção mediadora de um realizador. E a verdade é que não se desembaraçou - por mais que nos custe dizê-lo. O argumento continua a ser fantásticos, óptimos os diálogos, densas as personagens, o casting, neste caso, é excepcional (além do magnífico, repete-se, Hofman, está cheio de actrizes com personalidade, como Catherine Keener, Jennifer Jason Leigh, Dianne Wiest, Emily Watson ou Samantha Morton...) E sobretudo está cheio de boas ideias, bons fragmentos de filmes. Tantos que são demais. Dá ideia de que Kaufman, como acontece a tantos argumentistas, não conseguiu prescindir de boas ideias, por serem demasiado boas para desperdiçar. Afeiçoou-se a elas e faltou-lhe a economia desafectiva de realizador, em regra muito melhores nestas gestões da proporção de boas ideias na economia de um filme.

Acaba por ser um filme sobre tudo e nada, tal como a peça que o dramaturgo Hofmann leva a vida a encenar. A aperfeiçoar, a aperfeiçoar, até se tornar tão parecida com a realidade que já não se distingue dela. Tornando o seu cenário tão à escala autêntica de Nova Iorque que se confunde com a própria cidade. E aqui entram em cena imensas reflexões. Sobre a arte e a incompletude daqueles que passam pela vida sem nada criar de relevante. Sobre aqueles que a levam a imitar-se a si próprios, quando ainda eram, agora que já não são – como se fala no livro de Jean Chistophe. Sobre o que distingue a arte dos simulacros. Sobre as criações que deglutem como monstros os seus criadores. Sobre o sentido da vida, em suma...

Pode ser um filme, por vezes, prolixo. Mas não é de todo um filme pró lixo.


Kaufman é muito reconhecível neste filme construído em intrincados labirintos, com meta-labirintos por baixo. Estão lá as suas obsessões, as neuroses e as angústias dos criadores, as melancolias, as desilusões, as anarquias cronológicas, as clonagem de personalidades, o eu que é o outro, mais que ainda pode ser um terceiro... Tem uma ideia genial, que é a da casa de Samantha Morton em perpétua combustão. E aquela espécie de terceira dimensão, também presente noutros guiões de Kaufman, uma realidade paralela, que não é completamente fantasista, pois sempre se ancora na veracidade, presa nem que seja por um finíssimo fio de nylon invisível. É um non-sense com sentido – se é que isto faz sentido. Não é real, também não é sonho. Mas para ser Oito e ½ só tem o 1/2 , falta-lhe o Oito.

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