quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A ponte é uma passagem

A Outra Margem, de Luís Filipe Rocha

Um filme-ponte entre nós e os outros, a vida e a morte, o cinema português e – espera-se – o público.


«Ao fim destes anos todos, cada vez estou mais convencido de que não inventamos histórias, são elas que nos pedem e escolhem para serem contadas». Luís Filipe Rocha estava em Florença, emocionalmente desterrado, depois da morte do melhor amigo, quando a história do seu novo filme A Outra Margem começou a rondá-lo, a insinuar-se, a infiltrar-se. Ali estava ele, em estado de profunda tristeza, numa cidade a brotar de vida em cada esquina. E aquela ideia a interromper-lhe o desgosto, a insistir ser contada e escrita através dele. Um adolescente com trisomia XXI foi a primeira personagem a «aparecer-lhe». Em seguida um travesti, devastado pelo suicídio do companheiro. Ambos «estigmas que exilam seres humanos para a Outra margem da vida». Com o seu novo filme Luís Filipe Rocha propõe uma «ponte de compreensão entre duas margens». Para que os «normais» se confrontem com a sua própria «anormalidade».

O filme tem um arranque à Almodôvar. As cores, os décors, a música, os suicídios de pulsos cortados numa banheira, as personagens excessivas, a boîte de travestis: «Todas nós somos muito trágicas e um bocadinho mórbidas». Mas depois inverte para um rumo menos agreste, brando e profundamente português, numa depuração narrativa e coerência formal, cromática, e musical raras. A VISÃO iça-lhe esta ponte para A Outra Margem, em seis cenas.

CENA 1/Interior/Dia/Forno crematório do Alto de São João
Um início poderoso: um caixão e umas ossadas, muito realistas, a serem incinerados no crematório, ao som da música de cabaret cantada pelo actor, abundantemente maquilhado e travestido de «sensacional Vanessa». Ao contrário dos enterros, explica o realizador, a cremação acentua mais drasticamente o fim. Na terra, o processo é gradual, com o fogo tudo se torna definitivo, mais brutal, tudo se acaba naquele momento, do pó ao pó. Ao mesmo tempo tem algo de purificador: «O fogo liberta os que partem, e aquece os que ficam». Ao colocar tal banda sonora, e o espectáculo de travesti a acompanhar esta «segunda» morte, a do corpo em brasas, LFR ilustra de forma seca e directa a célebre frase «the show must go on». A vida continua. E nos próximos 10 minutos de filme, temos bem definido mágoa que atormenta Ricardo, depois da morte do companheiro, acentuada musicalmente pelo Medo, de Amália, fado sugerido pelo travesti profissional Fernando Santos que ajudou o actor a compor a personagem.

CENA 8/ Interior/ Dia /Monte Alentejano
Ricardo leva as cinzas do namorado aos pais deste que o recebem com sete pedras na mão e uma navalha aberta: «O nosso filho morreu há muito tempo»... Outra das coisas que impressiona no filme é a extrema verosimilhança da ruralidade. As personagens do campo, suas casas, ferramentas e afazeres são absolutamente credíveis. O realizador salienta o trabalho com os actores: «Houve procura obstinada de momentos de verdade e de simplicidade». Desde Cerromaior, que LFR sentia vontade de voltar a filmar no Alentejo. No final do filme, há-de se regressar às paisagens alentejanas. É aqui que Ricardo virá lançar, enfim, as cinzas ao vento. E o filme, que até tem um tom azulado, e frio, abre-se numa explosão de dourado e laranja da planície.

CENA 55 /Exterior /Dia/ Rio Tâmega, em Amarante
É o coração do filme. Ao fim de 16 anos, Ricardo reencontra-se com o pai, cada qual na sua margem, com o rio Tâmega pelo meio. Uma cena que esmaga de beleza e de manifestas conotações simbólicas. «Nós estamos sempre numa margem, mas consideramos estupidamente que estamos na margem certa», diz o realizador que não gosta da palavra «marginal»: Ao longo do filme, será Vasco, o adolescente, portador de síndoma de down sobrinho de Ricardo, que cruzará a ponte de Amarante. É ele a âncora de vida das personagens da história, «ele anda a unir as pessoas e as margens».

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