sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Sangue, suor e fado

Bobby Cassidy, CounterPuncher, de Bruno de Almeida






«Cidade sobrevivente de um futuro sempre ausente». O excerto do fado de Camané, com letra de Manuela de Freitas, não tem nada a ver com o novo filme de Bruno de Almeida, Bobby Cassidy, CounterPuncher (estreia-se hoje), um documentário centrado na extraordinária figura de um boxeur profissional americano reformado. E daí, talvez até tenha, senão não teria surgido no meio da conversa com o realizador, que já tinha usado este fado no retrato fragmentado, e algo desencantado, de Lisboa, em Lovebirds (2007). É de sobrevivência que se trata. Era assim nas várias histórias que compunham a longa anterior, é assim na vida deste pugilista canhoto, que participou em mais de 80 combates, ganhou 60, teve 16 derrotas, 1 indecisão e 27 KOs. Combateu com grandes estrelas do boxe mas nunca chegou ao topo. Mas sobreviveu. Sempre. E apesar de tudo. Mesmo quando tinha de reunir os pedaços de si caídos, no meio do ringue e no meio da vida. Sobreviveu a uma mãe alcoólica e a um padrasto que o espancava. «Aos 10 anos queria morrer», conta no documentário. «Hoje chama-se uma família disfuncional, dantes chamava-se uma ‘família de merda’». Tornou-se um miúdo arruaceiro, a dor não o afligia, «fundou a vida na raiva». «Para se ser boxeur é preciso ter um rudeza inata». No primeiro assalto pôs um tipo KO aos 28 segundos, conta, enquanto enrola metodicamente as fitas nas mãos, antes de enfiar as luvas. Este sentido cerimonial do boxe, «quase como um ritual de preparação para a morte», os códigos próprios de um mundo fechado, o facto de nos EUA existirem clubes de entre-ajuda de boxeurs reformados, abandonados pelos managers, descartáveis, sem apoio social, muitos deles com síndromes graves depois de anos de traumatismos cerebrais... Tudo isto fascinou o cineasta, a viver desde 1985 entre Nova Iorque e Lisboa. Não tanto o desporto, não percebia nada de boxe, aliás, tem dificuldade em chamar-lhe desporto, «é outra coisa qualquer, um acto de sobrevivência, entre a vida e a morte que se joga ali no ringue. Claro que há uma técnica, um virtuosismo, inteligência antes de tudo, mas ligada a um instinto básico animal de sobrevivência», explica. Também uma espécie de dança e de métrica muito típica dos filmes de boxe.

Os boxeurs também se abatem
Partiu da ideia de fazer um documentário geral sobre boxe na América. Com o Belarmino, «um dos mais bonitos filmes do cinema português», na cabeça, entrevistou dezenas de ex-boxeurs, visitou os seus clube e comunidades até que se deparou com Bobby Cassidy. A personagem era demasiado poderosa, decidiu consagrar-lhe todo o filme.
Intercalando as entrevistas com imagens de combates e fotos de época, num filme dividido em rounds, Bruno vai dando a conhecer este homem. 1º round: «Desde a infância diziam que não ia ser ninguém mas fui bom naquilo que fiz». Uma vez levou 122 pontos, teve de limar o osso da testa e a pele já tão macerada de cicatrizes. Não chegou a ver estrelas, «eram uma espécie de teias de aranha». O realizador começou o filme umas semanas antes do pai morrer, fazer o filme foi, para ele, uma espécie de luto. É que o boxeur violento, que depois de largar os ringues se dedicou às cobranças, andou pelos bas fonds do crime, cumpriu pena na prisão, também tinha um coração paternal, muito dedicado ao seus dois filhos.
Depois do celebrado documentário Amália –Estranha Forma de Vida (1994) e do filme sobre a fadista que passou no circuito americano. Depois do documentário 6=0 Homeostático, que ganhou uma menção honrosa no DocLisboa 2008, é a vez de Bruno de Almeida enrolar as fitas nas mãos para o 10º round: Operação Outono, um film em torno do assassinato de Humberto Delgado. Começará a rodar em Dezembro, escreve neste momento o guião com Frederico Delgado Rosa, autor de uma recente biografia, e neto do General. Sem medo. Apenas alguma apreensão: «Tenho de me concentrar muito».

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