quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Anorexia militante

Fome, de Steve Mcqueen

Guatânamo era na Europa, quando em Inglaterra governava uma mulher. Fome é um filme raro e muito duro de engolir




Tantas vezes se fala em sede de vingança, por ser coisa muito urgente, que se tem de ser feita com premência, aperto e sofreguidão. Fome de vingança é diferente. A fome contemporiza com a reflexão, é lenta, arrasta-se até ao colapso do pâncreas, às úlceras que se abrem na pele, ao estômago que começa a devorar-se, numa tentativa insana de sobrevivência autónoma. O primeiro filme do artista plástico Steve Mcqueen, Hunger, fala desta morte lenta, que vem de dentro, muito lá de dentro, onde as forças da repressão não conseguem actuar. E fala da fome como arma, e do corpo enquanto munição. Quando tudo falha, resta o corpo, o último reduto de liberdade, mesmo quando se está preso. E Fome (Câmara de Ouro do Festival de Cannes) encarcera-nos neste universo tumular da prisão de Maze, em Belfast, onde se encontravam presos activistas do IRA, que nos anos 80 reivindicaram o estatuto de prisioneiro político. Até à morte. Até à fome.

Desde criança que Steve Mcqueen vive com a imagem de Bobby Sands na cabeça. A fotografia do homem que se auto-condenou à morte lenta, fazendo greve da fome em nome de uma causa, aparecia todas as noites nos telejornais britânicos. O filme trata desta luta terminal, onde o campo de batalha é o corpo. O que interessava a este realizador inaugural (esta é a sua primeira obra cinematográfica) era muito mais as texturas das imagens do que a narrativa. Só grandes planos, numa atenção imensa ao detalhe e aos ínfimos burburinhos das coisas. E depois há silêncios que pingam e se derramam como os relógios de Dali. Quase não existe música nem sequer diálogos. Mcqueen não queria que as palavras ocupassem espaço. E neste aridez verbal, de repente a torrente de um diálogo de 22 minutos. Agora o ringue é mais conceptual, mas há igualmente combate, entre um padre e o líder Bobby Sands. Também existem em off as palavras de Margaret Tatcher a negar reconhecer a estes presos um estatuto diferente dos criminosos comuns (o estatuto foi-lhes negado a partir de 1976, numa estratégia de colocar a causa do IRA a par de outros crimes).

O filme começa com grandes planos do quotidiano de um homem. As mãos a mergulhar na água, as alianças que pousa na borda do lavatório, as migalhas do pequeno almoço a escorregar para o guardanapo, um olhar inquieto, as ruas de casas de tijolo, sempre iguais, da Irlanda. O homem espreita para debaixo do carro, antes de meter a chave na ignição. É polícia, tem as mãos esfareladas de esmurrar, por isso se baixa e espreita, está atento aos esconsos e aos buracos, como a ratazana que o observa no pátio da prisão. É este homem que nos conduz ao encarceramento nos terríveis bloco H. A cadeia é um duplo inferno - para quem lá trabalha também.

Os prisioneiros recusavam a envergar o uniforme da prisão: ficavam nus. Recusavam cortar a barba e o cabelo: os polícias faziam-no por eles, com raiva. Boicotavam com poucas mais armas que as do corpo e as da convicção. Esfregavam excrementos nas paredes da cela, entornavam urina para o corredor. O corpo era projéctil e esconderijo para as mensagens que tinham de passar lá para fora. A agulha a entrar na veia, as larvas nas celas, a pequena mosca com que os dedos brincam- às vezes a proximidade da câmara é tal que torna quase conceptual toda esta violência que vem de fora e de dentro (a fome). Dividido em três actos – as condições de vida na prisão, a longa conversa entre o líder do IRA e o padre, e a morte pela fome – o filme ante-estreou na secção Riscos e Ensaios do DOCLisboa. É baseado em factos reais, é certo. Mas trata-se de um filme de ficção no seu mais puro estado. Só que realizado por um artista plástico (que representará a Grã-Bretanha na bienal de Veneza deste ano) – o que confere uma espessura realmente diferente, não só aos planos e enquadramentos. Também ao pleno da obra.

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