quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

A revolta das esteticistas



Daqui P’rá Frente, de Catarina Ruivo





Infelizmente não há nenhum Teorema de Pitágoras aplicável ao cinema. Ou seja, a soma do quadrado das cenas boas não é igual a ao quadrado de hipotenusa. Senão, o segundo filme de Catarina Ruivo arrumava-se garantidamente numa prateleira honrosa da cinematografia portuguesa. Daqui P’rá Frente contém bastantes cenas boas, os catetos até estão certinhos e bem calculados, só que depois a hipotenusa não sai com o ângulo esperado, o que compromete a geometria e desarticula a figura. Mas começando pelos catetos - a cenas boas. A sequência inicial: uma mulher (Adelaide de Sousa) chega a casa de noite, não encontra as chaves na carteira, senta-se e adormece à porta. E nós assistimos ao amanhecer, ao momento de câmbio dos ruídos da noite pelos ruídos da manhã, sempre com a câmara fixa no rosto adormecido da actriz. Segue-se um inesperado cinematográfico muito prometedor: aproxima-se um polícia que… a pega ao colo e entra com ela em casa, ao estilo dum enfim sós matrimonial. Outras cena destacável, mais lá para o meio do filme: aquelas em que uma muito dona de casa Isabel Ruth admoesta o filho, enquanto fala ao telefone. Ou as das pouco dinâmicas reuniões de célula partidária. Ou ainda esta, que é porventura a melhor do filme, quando o polícia e seu parceiro escapam de uma perseguição pelos arrebaldes da margem sul e ficam a arquejar num campo. De repente, desatam a dançar à russa. Essa cena foi «roubada», confessa Catarina Ruivo. De Corto Maltese, daquela vez em que Corto e o odioso Rasputine dançam, inesperadamente, em A Casa Dourada de Samarcanda. Estavam contentes por estarem vivos, apenas isso.
Todos os filmes têm a sua génese. Daqui Prá Frente, a segunda longa de Catarina Ruivo (estreia-se hoje, dia 24), começou num gabinete de estética. Ali, no reino da futilidade, entre cera de depilação, pinças, cremes e vaidades, nasceu-lhe um «filme político», que afinal foi «história de amor». Certa vez, uma depiladora contou-lhe que tinha sido eleita cabeça de lista de um pequeno partido de cujo nome ela já nem recorda. Era pequeno e de esquerda, pronto. E também lhe contou que tinha andado a festejar sozinha, ao volante do seu carro, a apitar pelas ruas. Que ruas, que autarquia, que cara, que nome o da esteticista – tudo isso se dissipou... Agora a imagem do festejo solitário desta camarada depiladora atravessou-lhe a filmografia (a curta, Uma cerveja no Inverno, 1998, e a primeira longa, André Valente, 2004), sempre a insinuar-se. «Pareceu-me uma imagem fortíssima, a desta mulher a festejar sozinha», diz Catarina Ruivo. E cita Ruy Belo, «a minha forma de morrer é deixar cair ambos os braços». E é assim que aparece Adelaide de Sousa na pele da depiladora Dora a apitar pelo Montijo num Twingo azul.
No filme de Catarina Ruivo, os polícias passam a vida a fugir dos ladrões. As vizinhas são muito solícitas e ora trabalham num clube de streep-tease ou na roulotte que vende cachorros. E as depiladoras têm consciência política e fartam-se de ouvir MPB. Também há um Luís Miguel Cintra que solta lágrimas furtivas no cinema, enquanto assiste aos amanhãs que afinal não cantaram, nem tanto nem tão alto: é um ex-revolucionário saudoso, «porque o mundo não esteve à altura das suas expectativas». Uma sogra muito queixosa, excelentemente interpretada por Isabel Ruth, «todos nós conhecemos pessoas assim». Uma pequena célula partidária que reúne com um mural à MRPP em fundo. E ainda Alexandre Pinto, o habitual delinquente juvenil de serviço do cinema português: «A culpa é um bocado nossa [dos realizadores]. Ele é uma pessoa extraordinária, não tem nada de violento. É muito generoso e cria um óptimo ambiente de trabalho».
A depiladora e o polícia, o par do filme (Adelaide de Sousa e António Pedro Figueiredo) contracena na cama. Como guarda nocturno e mulher a dias, encontram-se de passagem entre os lençóis. O homem quer descansar, moído do trabalho e da pancada (é polícia e logo perseguido, espancado, raptado e alvejado) e a mulher chega das reuniões tardias do partido ainda com a adrenalina das votações e convocatórias. «Ela é que quer mudar o mundo, mas é ele que conhece o lado duro da vida». Daí, explica Catarina, este contraste no filme. As cenas dela são mais idílicas, os seus figurinos muito fabricados. As dele mais cruas e reais. No meio disto tudo, a tal vizinha (Rita Durão) e suas aparições heteronímicas: «Quis que ela fosse uma espécie de Pierrot que pontua todo o filme».

Samarcanda na margem sul
Catarina Ruivo, 37 anos, nunca participou numa reunião partidária, mas sabe que «a nossa memória política está inevitavelmente ligada à esquerda» e que «o mundo está a mudar e é preciso encontrar novas formas de agir». Nasceu em Coimbra, era o género de adolescente que ia sozinha ao cinema, um tio chamava-lhe a «papa-filmes». Gosta de poesia. E de condensar a ideia dos seus filmes num pedaço de poema. Daqui P’rá Frente em Ruy Belo, o próximo, em que já está a trabalhar, nos versos de Pessoa: «É ali, ali, que a vida é jovem e o amor sorri». Também gosta da mesa de montagem (trabalhava em montagem antes de ser realizadora e foi esta a sua especialização na Escola Superior de Cinema). Aprende-se muito, diz, a montar filmes de outros. Em relação às próprias obras é «doloroso, confrontamo-nos com tudo o que ficou mal, como olhar no espelho um rosto cheio de feridas». Mas ela gosta. De pensar a estrutura do filme, de encontrar-lhe a respiração, os planos de união, de optar pelos takes, de descobrir o fotograma certo... Coragem não é deitar fora os planos que ficaram mal, mas «ter a humildade de os manter porque fazem falta ao filme. Isso sim, é ingrato». Catarina privilegia as actuações, «sacrifico tudo pelos actores». E costuma partir assim para a escrita do argumento, com uma dose de indefinição, com algumas ideias difusas na cabeça, a ver até onde a história a leva, e quais as referências que se lhe intrometem. Sejam poéticas ou de Hugo Pratt (poéticas também).

1 comentário:

Anónimo disse...

Por favor tenho muito interesse neste titulo; "A revolta das esteticistas" seria possivel me envir? contato@especiariascosmeticas.com.br - aos cuidados de janete.Grata