quarta-feira, 11 de junho de 2008

Adivinha quem vem jantar

O Segredo de um Cuscuz, de Abdel Kechiche




Noutro dia, discutia com um amigo sobre o que devia ser de ensino obrigatório nas escolas de cinema. O primeiro ensinamento: como filmar uma conversa de escritório, a uma secretária (a falta que faz constata-se na quantidade de nucas e planos falhados em filmes portugueses). A segunda aprendizagem essencial seria como filmar uma refeição à volta de uma mesa. Só esta situação cinematográfica daria uma cadeira anual, ao longo do curso, com precedências, e graduações do tipo Filmar Refeições I, Filmar Refeições II e Filmar Refeições III... Os caloiros começariam com apenas duas personagens à volta de uma bancada de pequeno almoço, os vários locais onde colocar a câmara, que ângulos, que enquadramentos, que planos, que travellings... Os finalistas já se poderiam aventurar em banquetes, mesas redondas, mesas rectangulares, uma multidão de comensais, conversas cruzadas, braços que se atravessam para agarrar a garrafa, copos que tilintam, ruído de talheres...
O Segredo de um Cuscuz tem das melhores sequência filmadas a uma mesa, dos últimos tempos. É absolutamente fascinante a forma como este realizador franco-tunisino capta com o mais desconcertante dos naturalismos, todas as dinâmicas que poderiam acontecer durante um almoço familiar. Aqueles actores (todos não profissionais) não fingem que estão a comer, não fingem que estão à mesa. Aqueles (não) actores mastigam – e engolem mesmo, um delicioso, dizem, cuscuz de peixe, confeccionado pela matriarca da família. Aqueles (não) actores tiram espinhas da boca, sujam os dedos, falam com a boca cheia, conversam, passam pratos uns aos outros, riem, desconversam, mandam bocas uns aos outros, limpa-se as migalhas da mesa. E há conversas paralelas, os miúdos comem à parte, há sempre uns que chegam atrasados... Há muito tempo que no cinema não se via «comer» assim.

Há muito que não se via também «trabalhar» assim, numa «neo-realistica» dinâmica do século XXI. O filme inicia-se com trabalho a sério, com máquinas, ruídos e outras laborações – talvez desde O Filho, dos irmãos Dardenne (que aliás têm algumas semelhanças na forma «perseguitiva» ou realístico-documental com que filmam os actores ou no modo «deslizativo» da câmara nos diálogos, sem o abrupto do campo/contra-campo).
Há muito tempo que não se via/ouvia no cinema falar assim: conversas sobre as contas da luz e da electricidade, as dificuldades de um bebé transitar para o bacio, o preço
das fraldas (a culpa é dos fabricantes, dizem, fazem-nas tão absorventes que os putos não se sentem molhados, e funcionam como amortecedores quando caiem). Há muito tempo que não víamos uma rapariga (Hafsia Herzi) com barriga e lindíssima no cinema...

E no meio de toda estas conversas banais, de todas esta pessoas sedutoramente carregadas de imperfeições, mas cheias de vida dentro delas, vão-se divisando as tensões laborais, conjugais, familiares, etárias, sexuais, burocráticas, políticas, raciais, que dão espessura e densidade ao filme – muito para além da batata frita de pacote ou da comestibilidade rápida de balcão. Este é um cuscuz de confecção lenta, cheio de ingredientes, preparado com peixe fresco, pimentos e uma dose de amor, diz-se no filme. E isto pode até parecer piegas, mas deve ser mesmo amor o que liga todas estas mulheres ao protagonista, a ex-mulher, a mulher, as filhas, a enteada... Deste magrebino lacónico e de olhar mortificado pouco sabemos. Sabemos que trabalhou durante 35 anos num estaleiro, que o patrão o despede e lhe dá uma indemnização, que teve dois casamentos, e tem duas famílias, que leva frequentemente tainhas, oferecidas pelos pescadores do Porto, para ambos os agregados, e que dissolve todas as suas economias para montar um restaurante num barco, especializado no cuscuz da ex-mulher. Mas nem por um minuto duvidamos de que este pai de famílias (assim mesmo, no plural) deva ser uma pessoa especial. Não por causa de nenhum acto que tenha praticado, nem nada que tenha sentenciado, nem nada que, durante todo o filme, tenha feito. O que engrandece esta personagem não são os actos próprios mas os actos alheios. Ou seja, tudo aquilo que as mulheres são capazes de fazer por ele. É também isto que torna este filme extraordinário. Aliado à forma como se delonga, num jantar ou numa dança do ventre. E às quatro memoráveis interpretações deste actores não profissionais – sempre diálogos: o primeiro do patrão a despedir o empregado, os protestos de uma mãe cuja filha bebé não aprende a usar o bacio, a adolescente a convencer a mãe a ir à festa, a mulher traída, com a conivência da família do marido, que desaba num extraordinário monólogo de soluços e recriminações – ao que parece estes magrebinos imigrantes em França têm dificuldade de integrações, de se integrarem em França e também de integrar na família os imigrantes mais recentes. Tudo, mas tudo isto mesmo, é convocado à mesa desta magistral refeição.

1 comentário:

Sara M. disse...

ah, aqui está a crítica do cuscuz.

concordo com tudo.
faltou so comentar o fim mas, isso nao pode ser neste contexto pq é injusto para quem ainda nao viu o filme.