quinta-feira, 15 de maio de 2008

Passos em volta

Goodnight Irene, de Paolo Marinou-Balco





É impressão nossa ou já passámos por aqui antes? É só uma vaga sensação ou temos andado mesmo em círculos? E estamos a regressar sempre ao ponto de partida? Como se a entrevista se achasse suspensa numa espécie de pêndulo, que exige retorno antes de ir outra vez... E houvesse sempre pontas soltas a recolher, e outros fios de ideias que se atravessam... Não é impressão, as notas no caderno confirmam-no. Foi mesmo uma conversa caótica, encantadoramente caótica, dessas conversas que começam já a meio, e não têm fim à vista, senão o ordenado pelo «adiantado da hora». Paolo Marinou-Blanco não se importa. Ou, pelo menos, diz que não. Na sua primeira longa, Goodnight Irene (estreia-se hoje, 15) também existem, diz, «caixas dentro de caixas dentro de caixas...». É o que acontece quando se faz um filme sobre a amizade, o tempo e o espaço (este último acrescentamos nós, o realizador não concorda particularmente)... Ou seja, sobre quase nada e quase tudo.

Os artigos de revista não admitem o curso derivativo das conversas, onde tudo se anexa e tudo se dispersa. Tem sempre de haver um princípio. Este: Paolo com 4 ou 5 anos, em casa de família, na Grécia. E um tio apontava-lhe o ponteiro dos segundos no grande relógio de parede na casa da família: «Estás a ver? Cada segundo que passa nunca mais volta.» Não foi a partir daqui que Paolo passou a encarar o tempo filosoficamente, mas a obsessão ficou-lhe sempre «em pano de fundo»: «Não encontro uma solução satisfatória. O tempo deveria tornar tudo mais precioso, mas parece que torna tudo sem valor nenhum...»

E daqui para o princípio de Goodnight Irene: um travelling sobre um corredor, penumbrento, paredes encardidas, portas que dão para portas, lençóis revoltos numa cama, cadeiras empilhadas, abat-jours desconexos, caixas velhas, mobília atravancada, tralha, apenas tralha... Fica apresentado o espaço, como um palco de teatro – a casa de Irene. Em seguida, introduz-se a primeira personagem, enquadrada pelos caixilhos de uma janela antiga: Bruno (Nuno Lopes), um retraído serralheiro de bairro que tem como «passatempo» (na acepção menos hobbística do termo) invadir casas, vasculhar os mundos internos dos outros, e arquivá-los nos fundos da sua loja. Ao travelling para a frente, segue-se um travelling para trás, o caos é iluminado pela lanterna do invasor, ao som de música balcânica, igualmente circular. Alex (o actor galês Robert Pugh) também há-de ser introduzido, recortado por duas molduras, a janela da sua casa e a da sua insonorizada cabina de som. «Caixas dentro de caixas dentro de caixas...»

Pugh faz de actor falhado, velho e solitário, que carrega um desalento tchecoviano de Tio Vânia (tem o poster na parede), misturado com um sarcástico desprezo pela vida. Tem ainda alguns laivos à Capitão Haddock, está sempre a praguejar e a embebedar-se. Grava a sua shakespeareana voz para vídeos de promoção turística, ou como ele diz «ajudo idiotas de uma parte do mundo a darem-se com idiotas da outra». Daí aquela cápsula espacial no meio da sala, aquela cabina, que «parece uma cela». Como se não bastasse Paolo tê-lo feito estrangeiro em Lisboa, «sem elos, nem família nem memórias afectivas», ainda o encarcera do mundo naquele cubículo de isolamento acústico, «um espaço seco e vazio». À prova de som e de emoções. «Caixas dentro de caixas dentro de caixas»...

O espaço...
Já só falta a terceira personagem, uma espécie de ponte, a unir a insularidade destes dois, numa história de pura amizade: Irene (Rita Loureiro), é uma pintora que surge como desaparece, misteriosamente. A presença da sua ausência marca toda a segunda parte do filme, como um Godot cinematográfico. É o espaço vazio que deixa no apartamento que faz os dois homens encontrarem-se e moverem-se. À procura de Irene. Ou no entender mordazmente becketiano de Alex: «É bom ter alguma coisa para fazer, enquanto se espera.»
O apartamento de Irene, e esse amontoado caótico de coisas, é uma espécie de casa-mãe. «Queria que funcionasse como um espaço intemporal, como um refúgio para aqueles dois homens... Ou como um útero...», explica Paolo. É aqui que se gera a amizade. É aqui que ambos se sentem seguros, fora do mundo e, ao mesmo tempo, no meio dele. Aquela casa está habitada de história, cheia de marcas de vida, de pegadas humanas, de existências passadas empilhadas a cada canto. É uma casa muito diferente daquelas que se costuma ver nos filmes. Esta tem pó a sério, o soalho range, as carpetes estão gastas e pisadas, as mobílias desirmanadas, os molhos de papéis carcomidos. Um casa fina do Bairro da Bica (hoje pronta a alugar por 1 500 euros/mês) envelhecida de raiz, num trabalho de colaboração entre o realizador, o director de fotografia e o artístico (Miguel Sales Lopes e João Torres). «Era fundamental evitar o novo, o falso, tanto nas casas como nas roupas e décor. Tive de lutar contra o desejo de ter coisas novas e bonitas.» Até os óculos de Bruno parecem ter passado pelas injúrias do tempo. Nuno Lopes tinha o cuidado de passar gordura pelas lentes, antes das filmagens, e partiu-os de propósito só para tornar a soldá-los...

...o tempo
Goodnight Irene respira verdade por todos os poros, até quando integra a cenografia dos sonhos, ou teatralidade dos gestos, ou a artificialidade das citações (Beckett, sempre Beckett, e também Webster ou Sófocles), ou o bilinguismo dos diálogos (efeito muito estudado e trabalhado para alcançar uma cadência natural), ou a intencionalidade dos símbolos. Há uma cena à Kusturica (não é uma referência propositada), em que cães tentam escorraçar Alex do seu território – o deste mundo e o de um palco vazio, em que se representara a peça de Sófocles sobre a retirada de Édipo, depois de todos os pecados e tragédias, Édipo em Corona. Também há umas cenas mais nouvellevagueanas passadas numa praia ou numas ruínas romanas, entre colunas (não lhe chamem pilares), sentinelas de pedra, que já não sustentam coisa nenhuma. E há, enfim, a morte de uma ponte, como se o tempo não tivesse margens, apenas se escoasse até ao último grão de areia na ampulheta, num dourado entardecer... «Caixas dentro de caixas»: um filme sobre um actor que está à beira de interpretar o seu último acto.

Sobretudo este é um filme com ideias lá dentro. Ideias de personagens, ideias de diálogos, ideias de situações, ideias dramáticas, ideias humorísticas, ideias da música, numa fusão perfeita com a acção. Mais: é um filme com ideias que funcionam. É um daqueles raros (raríssimos) filmes portugueses, em que tudo parece perfeito, desde o guião ao casting, aos décors, aos diálogos, aos enquadramentos, à fotografia. Daqueles raros (raríssimos) filmes portugueses que até podem ser olhados sem condescendência. Estamos noutro patamar. Onde as camadas de leitura se sobrepõem, e as personagens não têm só fora – também têm dentro. Goognight Irene possui o encanto da densidade, subleituras que se desvendam a cada passagem, ou que não se desvendam de todo. Algumas referências, literárias ou não, permanecem num qualquer subsolo da narrativa, e, no entanto conferem-lhe espessura, «adensam o conteúdo»: «O que me interessava era o conteúdo emocional dos espaços e das personagens, mas procurei seguir o ideal inatingível: cada enquadramento teria de contar o mais possível, e de adicionar mais à narrativa», explica o realizador.

... e os outros
Em todo o filme, os três actores apenas se juntam em duas ou três cenas. Rita Loureiro – tem aqui, talvez, o seu melhor desempenho de sempre no cinema – aguenta o embate de contracenar com Robert Pugh. Nuno Lopes aparece mais apagado. Alex toma conta das cenas, não por demérito de Nuno, acrescente-se, são os ângulos de câmara que dão mais protagonismo a este actor inglês, conhecido por papéis secundários em algumas grandes produções (Master and Comander, por exemplo) e por séries televisivas. Mas, ao contrário do que se possa supor, nada no currículo, nem nos gostos de Pugh, o aproxima dos palcos shakespeareanos ou das tragédias gregas. Paolo põe-no a recitar Beckett e Sófocles. E sempre que ele o fazia, a equipa de rodagem parava, os aderecistas imobilizavam-se, os electricistas suspendiam a dentada na sanduíche. O realizador descobriu-lhe uma vocação? «Até pode ter sido, mas ele não está nada interessado em segui-la...»

E, neste contexto de vida pré-morte (não são todas?), Goodnight Irene consegue ser um filme optimista. Alex parte, mas quando o faz estava vivo: conheceu a amizade. Paolo revê-se nesta personagem, no seu lado mais nietzschiano de achar que «a forma mais extrema de idealismo é o cinismo». Autor e personagem partilham «um cepticismo acentuado». Paolo atormenta-se com a passagem do tempo, com o sentido da falta de sentido. Sempre o intrigou o negro total, a impossibilidade absoluta de redenção, aquela máxima de Beckett: «Errar, errar sempre, errar melhor»... «Então porquê continuar a escrever e a criar?», pergunta-se. Ao contrário de Sartre («O inferno são os outros»), para Paolo os outros podem ser o paraíso. A amizade. Atribui-lhe mais valor do que ao amor, «que envolve mais ego», comenta. «Gosto de pessoas, e vejo nisso alguma luz». Caixas dentro de caixas dentro de caixas...

Perfil: Cidadão do mundo
Mas quem é este realizador de 35 anos que apresenta agora a sua primeira longa e fala fluentemente cinco línguas – inglês, português, francês, grego e espanhol? Quem é Paolo Marinou-Branco, o realizador que fez um mestrado em Beckett, estagiou com Spike Lee, meditou, em voto de silêncio, durante meses, em mosteiros indianos e tailandeses, e tem no cerebralíssimo Ivan, o Terrível de Eisenstein, um dos seus filmes favoritos? Filho de pai português e mãe grega, Paolo nasceu em Nova Iorque e cresceu entre a Bélgica, a Madeira, a Grécia e a África do Sul. A profissão do pai, na TAP, obrigava a família a mudar de país a cada quatro anos. Em adolescente, Paolo idolatrava Beckett como só um adolescente pode adorar uma estrela de rock. Estudou Filosofia e História no London School of Economics, e tirou um mestrado em Literatura Francesa, na University College London. Foi a nouvelle vague francesa que o fez despertar para o cinema. Sobretudo Godard. Sentiu-se fascinado com Pierrot Le Fou. Completou um mestrado em realização de cinema, na New York University, e um curso de direcção de fotografia na República Checa.

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