quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Discriminação geriátrica

Este País Não É Para Velhos, de Ethan e Joel Coen



A lei da bala dá pouca longevidade – sabemos. Ser pistoleiro não é uma profissão de futuro – sabemos. No faroeste estar vivo é um estado temporário e só alguns chegam a velhos – também sabemos. O que talvez não saibamos tão bem é porque estão os realizadores (Paul Thomas Anderson, com Haverá Sangue, e os irmãos Coen) a regressar a este espaço mítico do cinema americano, o Oeste. Talvez porque estas paragens de pradarias e dos desertos inclementes do Texas sejam o espaço ideal para os Coen soltarem os seus (nossos) demónios. E deixarem-nos estar em roda livre, sem interferências, nem justificações, nem enquadramentos ou contextualizações, desculpas ou motivações. E o lobo pode continuar a ser o lobo do homem à vontade. E não é preciso haver índios caçadores de escalpes nem mexicanos ladrões de gado, nem inimigos de qualquer espécie. Independentemente de tudo o resto, uma coisa é sempre certa: «Haverá Sangue».

No Oeste dos anos 80 deste filme há vilões, solitários e errantes, um velho xerife e motéis de beira da estrada, de onde as personagens entram e saem, no intervalo dos tiroteios. E há esta ideia de memória cíclica, encarnada na personagem do xerife à beira da reforma (Tommy Lee Jones), que é um desiludido conformado, já viu muito, e calcula o que se seguirá. O título Este País Não É Para Velhos é nome de um romance de Cornac McCarty (vencedor de um Pulitzer), que por sua vez o retirou do primeiro verso do poema de W. B. Yeats chamado Rumo a Bizâncio. O xerife é um homem do passado, resta-lhe o papel de espectador estupefacto e desencantado, como no poema. O mundo passa-lhe diante dos olhos, incompreensível e ensandecido. Não tem salvação. Ele limita-se a circular por ali, impotente, como os rolos de arbustos, empurrados pelo vento, que costumam cruzar as planícies do velho oeste – pelo menos nos filmes é assim.

E o que este xerife, com a passividade de um desistente, observa é o desenrolar de uma matança, ele cinge-se a seguir o rasto de sangue que anuncia os cadáveres.

E é com um rasto de sangue que o filme se inicia. Por enquanto, o sangue de um veado ferido pelo tiro falhado de um caçador. Lá adiante, um cão coxo na pradaria. Mau prenúncio. O caçador há-de tornar-se presa e também de deixar o seu próprio rasto de sangue, quando se apodera de uma mala com dois milhões de dólares, entre os despojos de uma operação de tráfico de droga que não correu bem.

Corpos, carros abandonados, um moribundo que pede água, um cadáver de cão – e há sempre qualquer coisa de inexplicavelmente trágico, quando se vê homens mortos, lado a lado com animais mortos...

Mas é Javier Bardem quem se torna dono do filme – e dos destinos de todas as personagens. É um serial killer de cabelo à tijela, assassino profissional, perseguidor implacável, sem sentido de piedade nem de humor, de olhar opaco e expressão impassível. Que mantém o mesmo rosto indiferente quando interroga as vítimas, quando estrangula um polícia com as algemas, quando atira sobre um corvo na estrada, quando cose a sua ferida de bala, ou quando provoca uma explosão num carro para ir á farmácia abastecer-se de desinfectantes e ligaduras. Ele acha que a vida dos outros depende do acaso e da cara ou coroa da sua moeda, mas é a sua vontade que prevalece sobre os destinos alheios. E a vontade é matar sempre – ele é um homem de princípios.

No fundo, o velho xerife, o perseguidor e o caçador da mala são os três a mesma personagem. Todos são imperturbáveis. O primeiro tem a passividade da impotência, já nada o pode surpreender. O segundo, a indiferença da impiedade. O terceiro, o sangue frio da ganância. Ou seja, não é um «três em um», mas um «um em três».

Este País Não É Para Velhos pode não ser um grande filme. É antes um filme com grandes cenas. De câmaras fixas sem música. E de grandes diálogos, injectados do humor ácido dos irmãos Coen, cheios dos elementos bizarros (Bardem mata com uma estranha botija de ar comprimido que serve para abater novilhos – as armas dos novos cow-boys) e de desmontagem do costume. E de pendências que ficam em aberto – como na vida real.

É espantoso o primeiro diálogo de apresentação de Javier Bardem, com um inofensivo e aterrorizado dono da venda de berma de estrada - e enquanto a sua vida se joga naquela tensa e absurda conversa, e na moeda atirada ao ar, há um papel de chocolate que vibra e se desenrola em cima da mesa. Ou a perseguição de um cão feroz, magnificamente filmada, através de um rio (algo ainda nunca visto no cinema), e que só se detém com uma bala, no impulso do salto, no último instante. Ou a forma como o caçador solitário se despede da mulher: «Se não voltar, diz à minha mãe que a amo». «A tua mãe já está morta». «Então digo-lhe eu mesmo». Ou como o xerife se refere ao assassínio dos traficantes de droga: «Morreram de morte natural. Natural à forma como viviam». Ou finalmente o ar enfadado de Bardem quando a próxima vítima lhe diz «você não precisa de fazer isto». «Porque é que as pessoas me estão sempre a dizer ‘você não precisa de fazer isto’»...

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