sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Uma Deusa chamada Ciência

Ágora, de Alejandro Almenábar






No terraço do seu palácio, a bela filósofa Hipátia ajoelha-se, ergue os olhos para as estrelas, e medita, como quem reza. Só que a sua religião é a ciência e o seu Deus o universo. Em Ágora, a super-produção realizada pelo espanhol Alejandro Almenábar, existe em pano de fundo uma guerra religiosa, entre o Olimpo dos Deuses Romanos e o Cristianismo, em que este último, optando por uma luta armada, e apoiado no imperador Teodósio, sai vencedor. Mas a verdadeira e eterna luta dá-se entre religião e ciência. A ciência acaba vilmente derrotada com consequências terríveis para a História. O assassínio de Hipátia, pelos monges Parabalani, braços armados da Igreja, por apedrejamento (assim como Jesus Cristo impediu os fariseus de fazer a Maria Madalena), simboliza na prática a entrada no obscurantismo medieval. A subida do Cristianismo ao poder concretizou-se numa infinita derrota da ciência, e num atraso civilizacional de dez séculos. Durante a Idade Média cristã a ciência foi confundida com bruxaria e a dúvida um pecado mortal, devidamente curado com o fogo da inquisição. Bom exemplo desse atraso civilizacional é a teoria heliocêntrica avançada por Ptolomeu e apenas recuperada por Copérnico e Galileu nos séc. XVI e XVII (Almenábar adivinha que Hipátia, ela própria, teria chegado por si só à teoria do movimento de translação descrevendo uma ogiva e não um círculo perfeito). Nada disto é propriamente novidade, tal como não é nenhuma descoberta extraordinária que a Bíblia, o Antigo Testamento, é um «manual de maus costumes», que, várias vezes ao longo da História, serviu de pretexto para a barbárie. Contudo, as palavras de Saramago, surpreendentemente, ainda hoje criaram polémica, como se de uma blasfémia se tratasse. Também não é nenhuma blasfémia (nem novidade) elucidar, com factos, que em nome de Cristo se cometeram os mais horrendos crimes da História, superiores em quantidade e qualidade ao do nazismo e estalinismo juntos. Talvez seja essa ideia, apresentada de forma tão clara e inequívoca em Ágora, que levou Saramago a dizer: «É uma obra-prima, talvez demasiado grande para caber na cabeça de algumas pessoas». Esse risco de incompreensão e polémica, por estranho que possa parecer, realmente existe. A nossa sociedade está mais próxima da Roma Antiga (ou Alexandria) do que da Idade Média, contudo algumas mentes fundidas pela religião, ainda demonstram um enorme receio do conhecimento, devido a exemplos repetidos ao longo da História, em que o homem desmascarou os deuses, que é como quem diz, percebeu que havia uma explicação científica para a trovoada, e até a conseguiu prever, desmoronando a ideia de que os deuses estão zangados. Hoje os deuses ainda se manifestam quando há algo que a ciência não explica.

Tudo isto a propósito de Ágora que, como por aqui se vê, vive muito para além da sala de cinema. A película em si é suficientemente grandiosa para merecer vários Óscares. Talvez não tanto para os actores, mas sem dúvida para o argumento, guarda-roupa, etc. Um épico, à moda antiga, que coloca questões maiores. Situa-se na Alexandria do século IV, no declínio do Império Romano, que começou pela sua cisão e acaba com a adopção do cristianismo, como religião oficial, pelo imperador Constantino (o verdadeiro fim dá-se quando Maomé II toma Constantinopla).

É inteligente a forma como Almenábar desenha esta história, centrando-se na mítica figura de Hepátia. Faz com que de início todas as principais personagens se juntem, em nome da ciência. A ciência prevalece até que a religião os separe. Separa-os mas mantém-nos como irmãos, a Oreste, futuro centurião falsamente (?) convertido ao cristianismo e Synesius, o bispo de Ptolemais, apresentado como uma facção moderada, que se opõe a Cirilo (hoje santo da Igreja), que acabou por ser o dominador. Pelo meio há também Davus, o sábio escravo de Hipátia, apaixonado pela sua ama, que serve de ponte entre os dois mundos. Viaja da ciência à religião, do amor ao ódio, de protegido de Hipátia a soldado dos monges Paralabani. Ele serve também para o final mais impressionante fazendo com que a filósofa só seja lapidada depois de morta.

A morte de hipátia deu que falar. Com ela morreu uma História diferente, de maior igualdade entre os sexos e de tempos mais modernos, em que o conhecimento era a base de uma civilização. Foi a nossa civilização, a cristã, que destruiu a outra, que era mais sábia e avançada. Destruímos as dúvidas e instaurámos os medos. Há um momento, em que o bispo Synesius tenta converter a deusa da ciência. Só que Hipátia resiste, transformando-se no primeiro mártir da ciência. Resiste na convicção da dúvida, dizendo: «Eu posso duvidar e tu não». Só há liberdade quando se duvida. A Ciência e a Religião continuam em conflito. Mas, até ver, no mundo ocidental, a Ciência está a levar a melhor.

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