quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Seja o que Deus quiser


Um Homem Sério, dos Irmãos Coen






Tal como em Irmão onde estás, os irmãos Coen seguiram a estrutura da Odisseia, em Um Homem Sério reproduzem o Livro de Job. De um lado, o clássico dos clássicos gregos, do outro um dos mais estruturantes livros do Antigo Testamento. A filosofia inerente está resumida na epígrafe, uma frase do rabi Vashi, porventura o mais famoso intérprete da Bíblia na Idade Média, que aconselha: «Recebe com simplicidade tudo o que te acontece». Esta frase, numa leitura do livro de Job, por si só, é matéria prima mais do que suficiente para uma das mais inteligentes comédias dos Coen. As leituras religiosas transbordam para fora do filme. Mas a tese que está em debate é mesmo a resignação.
Por aí várias questões se levantam, que não são o sujeito palpável do filme, e que se prendem sempre com o judaísmo. Há quem diga que foi essa leitura do Livro de Job, ou do espírito do texto que lhe está subjacente, o apela à passividade, que fez com que os judeus se submetessem ao crudelíssimo regime nazi sem oferecer uma resistência organizada. Os nazis ter-se-ão aproveitado do facto de vir nas Escrituras a ideia de rendição ao destino, para o Holocausto. Aqui esse povo judeu resignado ao destino está resumido na personagem de Larry Gopnik, maravilhosamente interpretada por Michael Stuhlbarg. Um judeu que aceita com tal passividade tudo o que lhe acontece que é abusado por todos, mesmo pelos próprios judeus.
Lado a lado, há o conceito de culpa. Larry repete ene vezes ao longo do filme: «Mas eu não fiz nada», manifestando a sua inocência, como se a não acção fosse o suficiente para se libertar da culpa. Pode-se partir daqui para o episódio do Novo Testamento de Jesus com os fariseus. Em que estes são criticados exactamente por nada fazer, servindo a parábola de exemplo para o pecado por omissão.
Esta personagem que aceita com simplicidade todos os males que a vida lhe traz é o mais perfeito retrato cómico, com um potencial humorístico quase ilimitado, também de humor físico. Tudo lhe acontece, até o cúmulo do melhor amigo lhe roubar a mulher, e ele aceita tudo isto com simplicidade. Parte de rabi em rabi em busca de respostas, e tudo o que obtém são parábolas repetidas e tolas. Só que ele nunca reage e as desgraças vão-se sucedendo de cúmulo em cúmulo. Tornando-se um duro golpe na própria religião (judaica e cristã).
Um Homem Sério está longe da violência bruta e seca de Este País Não é para Velhos, que lhes valeu, entre outros, o Óscar de melhor filme. Mas também não é uma comédia despretensiosa, ao estilo do anterior Destruir depois de ler, é provavelmente um dos filmes de Coen mais difíceis de enquadrar, até porque começa por ser falado em polaco.
Talvez desde Barton Fink que nunca se expuseram de forma tão clara. Em aqueloutro contavam a história de um guionista, neste contam uma história profundamente judaica. Um filme de época, passado nos anos 60, em que o judaísmo ainda é preponderante, nota-se no entanto a construção de um vazio, de uma sociedade nova, laica ou laicizante, mas vazia de princípios. É esse o tornado que vai arrebentar com aquele mundo e que Larry, como sempre, aceita impávido e sereno.
É mesmo difícil enquadrar este filme na riquíssima obra dos Coen. Está distante dos filmes mais recentes, mas também dos primeiros. Talvez se encontrem pontos de contacto com Irmão, Onde estás? e Barton Fink. Mas é melhor do que qualquer um deles. Um Homem Sério é o regresso em grande de uma dupla que não pára de nos surpreender.

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