sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Sublime aborrecimento

Três Tempos, de Hou Hsiao Hsien



Se, Três Tempos, o filme do aclamado realizador taiwanês Hou Hsiao Hsien (HHH), fosse meteorologia, era neblina. Se fosse geografia, era planície. Se fosse carro, era ponto morto. HHH nunca mete mudanças, e no entanto, o filme flúi numa cadência fluvial, dissolvido num tempo cheio de demoras, de gestos, de repetições, de silêncios. Três tempos, três épocas (1966, 1911 e 2005), três histórias, três modalidades de amor, sempre a mesma dupla de actores. Entre a suavidade das bolas que deslizam no verde do snooker (na primeira história, passada em 1966), a brandura dos dedos de mulher na grande trança de chinês (na segunda, em 1911) e a amenidade do design (na terceira, em 2005), Três Tempos é um filme de fragmentos não aguçados, estilhaços arredondados que não cortam, antes envolvem. Os personagens nunca estão, antes passam, na delicadeza da transição. Sem deixar rastos nem marcas, como se não houvesse peso, apenas texturas e padrões. Tudo tão atmosférico, tão perfeito, tão redondo, tão gasoso. Tão cheio de cinema lá dentro. Três Tempos deixa o espectador num estado de hipnótica contemplação. Três Tempos é um filme sem força de gravidade.

As bolas que deslizam no verde do snooker. A China americanizada de Taiwan. O clássico Smoke Gets in Your Eyes que ainda se irá escutar mais duas vezes, em versão integral. Um homem e uma mulher. Não se conhecem. Ele parte no barco, ela chega no barco, cruzam-se lá fora no rio, encontram-se cá dentro numa espécie de bar de snooker, onde a mulher trabalha. A primeira fala acontece ao fim dos primeiros dez minutos de filme, um qualquer diálogo banal. A esta altura já estão os espectadores agarrados pela perfeição das composições, pela aparente simplicidade dos planos, pela extrema unidade interior do filme, pela harmonia das cores e dos padrões, pela fusão da extraordinária banda sonora, pelo sempre mesmo ângulo da sala de bilhar onde pouco e muito se passa, pelo equilíbrio das linhas horizontais que sustentam os planos e as delongas, pela cadência deslizante da história.

Ao contrário do que se poderia supor, HHH filmou esta triologia em tempo recorde. É daqueles realizadores que não se preocupam nada com a linearidade narrativa e que partem para a rodagem sem guião integralmente definido, sem diálogos estanques, apenas com uma ideia e uma emoção. Muitos outros realizadores se arrogarão desta pretensão, de fazer do cinema um estado de alma, de filmar ao sabor do sentimento que aflora no momento e tal... A diferença é que HHH pode.

Nos casos de amor de HHH, mais platónicas, mais sexuais ou mais impossíveis, há sempre alguém que parte ou que chega, há sempre uma relação latente que se mantém à prudente distância de uma carta ou de uma mensagem SMS. Há sempre música que se funde com a imagem. Há sempre a languidez da duração. Há palavras poucas – raras na primeira história, abundantes na segunda, mas HHH perversamente fê-la filme mudo, com diálogos em legenda como nos filmes antigos, só que a cores e com uma extraordinária composição de piano. Entre a delicadeza dos gestos de 1911, e a epilepsia tecnológica de 2005, na sala de bilhar, no bordel, no apartamento, há sempre um plano de interior que deixa antever (através de uma porta aberta ou uma janela) um bocado de realidade lá de fora. E há sempre um fragmento de vidas que transitam. O resto das histórias são como aquelas portas fechadas de que se perdeu a chave. São apenas momentos. Três.

1 comentário:

a glória do vulgar disse...

5.3.08
três tempos, uma leitura

entre as personagens do filme “três tempos” - em chinês 最好的时光,isto é, o(s) melhor(es) tempo(s) - do realizador taiwanês Hou Hsiao-Hsien (侯孝贤 caracteres chineses que o pinyin transcreve como Hou Xiaoxian) fiquei presa a duas: taiwan e o cinema. são ambas construídas a partir de um fundo, simultaneamente individual e colectivo, nacional e internacional, de memórias fragmentadas manipuladas fragmentariamente.
'taiwan' é mostrado através da história da relação amorosa homem-mulher, uma relação humana cujo conteúdo-forma, dependendo das condições culturais, sociais e políticas do momento histórico, vai variando ao longo do tempo. o 'cinema' é contado através da evocação de uma linhagem de cineastas e de filmes, tanto do 'eu' como dos 'outros'.
na relação, claramente amorosa, entre estas duas personagens, taiwan representa o feminino: é o território desejado/ameaçado pelo comunismo chinês, pelo colonialismo japonês, pela tecnologismo internacional; é a ilha cuja beleza natural e incerteza cultural, constitui objecto da sedução profissional (no bilhar, no bordel, na discoteca). já o cinema está do lado do masculino, aparecendo como um agente da salvação (im)possível: pelo amor (procurado pelo soldado), pela liberdade (reivindicada pelo republicano), pela juventude (praticada pelo fotógrafo); o masculino é sobretudo o sujeito do olhar que, ao fotografar/filmar as suaso memórias individuais reinventa a memória colectiva necessária à construção de uma identidade nacional.
nenhuma destas personagens (tal como de resto os seus personificadores) é do tipo universal ou essencial: nelo contrário, elas são construídos como um processo em aberto, o resultado, sempre provisório, dos momentos históricos e das condições socio-culturais particulares em que vivem. é por essa especificidade própria que ambos se distinguem: o país taiwan face a outros países que também são ilhas, onde também se falam várias línguas chinesas, ou que também foram colonizados; o cinema de hou, face à sua própria história, face aos outros cineastas taiwaneses, chineses, internacionais e também face a outras formas de arte. taiwan não apaga as suas marcas japonesas (o nome da primeira rapariga do bilhar) como o cinema, apesar de tão falado (as muitas línguas que se ouvem no filme apesar de as personagens falarem tão pouco) não cala o seu silêncio inicial (tão eloquente no segundo tempo, o da liberdade). de resto as atmosferas dos três filmes que constituem este filme evocam atmosferas de filmes anteriores do autor: pelo 'tempo do amor', passa a memória de "os rapazes de fengui " (e também do ambiente do 'in the mood for love', do cineasta de hong kong, wang kar wei); no ‘tempo da liberdade’, respira-se a falta de ar característica de “as flores de shanghai”; e no ‘tempo da juventude’, a apatia da juventude desenvolve é a do “adeus sul adeus”.
para estas duas personagens, que sinto serem os grandes protagonistas do(s) filme(s) de hou, o presente aparece muito como a projecção, no futuro, de memórias do passado.
são pobres as 'histórias' dos três tempos, todas elas assentando em muito poucos e muito banais incidentes da vida diária. mas as imagens por que eles são narrados são de uma riqueza imensa. um luxo sumptuoso no que toca à luz, tanto quando inunda horizontalmente, através dos vidros das portas e janelas, como quando cai verticalmente de pequenas lâmpadas solitariamente suspensas dos tectos. também a 'pobreza' dos movimentos da câmara, quase sempre parada, contrasta com a riqueza da coreografia dos actores e figurantes num permanente movimento de entrada e saída de cena.