sábado, 27 de outubro de 2007

AMoore e ódio

Sicko, de Michael Moore

«Sicko» de Michael Moore: o que pode haver de mais irónico do que ver os heróis do 11 de Setembro, rejeitados pelo sistema das seguradoras americano, a serem tratados gratuitamente pelos cubanos?




O que há de bom nos russos é a má opinião que têm de si próprios – diz Bazárov, uma personagem de Turguéniev (em Pais e Filhos), medonhamente sobranceira, insuportavelmente niilista. O que há de mais irritante nos americanos é a boa opinião que têm de si próprios. Por mais que caiam torres, e se inundem cidades. Por mais que lhes subam os índices de criminalidade e do colesterol. Por mais que o presidente se engasgue, embarace e faça stand up comedy em público. Por mais que a guerra lhes escape das mãos como a areia do deserto... Muitos continuam a não querer acordar do sonho americano – que às vezes é mais sono, noutras coma profundo. O que há de mais irritante nos americanos é a boa opinião que têm de si próprios. Ainda bem que existe o Michael Moore.
E o que há de mais irritante nas pessoas que vão ver (ou não vão ver) os filme de Michael Moore é virem depois dizer que é propaganda e demagogia... Ou então – e isto sim, é mesmo irritante – usarem o argumento, estafado até à náusea, de que Moore é o Bush ao contrário... Claro que Moore é tão americano como os sistemas que critica, claro que usa boné de pala e tudo – só falta dizer que ele é gordo, e católico (considerada uma excentricidade num país de protestantes). Claro que ele tudo transforma, tudo recria e trafica. Claro que ele não tem a mínima preocupação com o contraditório, com a isenção. Claro que a ética americana não tem nada a ver com a europeia, a que nos acostumámos. Claro que em Sicko (aplaudido em Cannes e ante-estreado no Doc Lisboa), o filme sobre a ausência de serviço nacional de saúde, universal e gratuito, nos EUA, Moore não mostra a mínima preocupação em «dar a outra parte». Mas a questão é que ele é... a outra parte. Num meio tão impregnado pela versão oficial, como o americano, é bom que apareçam outras (a)versões. Moore é, acima de tudo, um desmistificador, um arrasador de certezas, um abalador de consciências, um colocador de perplexidades, um desmontador de mitos, um desconjuntador de versões. Mesmo que, para isso, tenha de construir a sua.
E afinal Moore nem sequer é um radical. O que ele vem defender em Sicko não tem nada de revolucionário nem de subversivo. Apenas que o Estado deve tomar conta da saúde dos seus cidadãos, como no Canadá, em França ou em Inglaterra (e em Portugal, por enquanto). Se na Europa, isto parece adquirido (já esteve mais...), e se considera que o Estado não faz mais que a sua obrigação, nos EUA (o único país ocidental a não dispor de uma cobertura social universal e onde o lobby das seguradoras se insinua com todo o à-vontade na política), o conceito do livre acesso à saúde é algo de insurrecto, amotinador, vade retro... E logo há quem veja aqui perniciosas infiltrações comunistas. «Você é socialista?», pergunta o próprio Moore a um canadiano que, num carrinho de golfe, lhe fala do princípio da solidariedade, uma questão cívica, segundo o qual os que recebem mais devem pagar pelos que recebem menos. «Não, por acaso até sou do partido conservador», responde-lhe ele.
Sicko começa com uma imagem choque. Adam a coser a sua própria ferida porque não tem seguro nem dinheiro para os respectivos custos médicos. E depois, Rick que decepou dois dedos num acidente de trabalho e, por falta de verba, vê-se obrigado a escolher qual das falanges prefere reimplantar. Mas, logo se apressa a voz off de Michael Moore: este não é um filme sobre Adam, nem sobre Rick, nem sobre os 50 milhões de pessoas sem seguro de saúde nos EUA. «É sobre os 250 milhões que têm seguro». E logo surgem imagens dos anos 50, filmes de época com felizes famílias sorridentes, rapazes com um higiénico corte à escovinha e donas de casa que enfrentam as tarefas domésticas exultantes de alegria. Bem-vindos ao american dream. E ao neo-patriotismo conservador. E ao incrível mundo das seguradoras e todo o rol de escusas, artimanhas, astúcias, estratagemas, ardis, lances, ciladas para ganhar dinheiro e deixar os (in)seguros doentes do lado de fora dos hospitais. E uma astronómica lista de doenças «inseguráveis» passa a correr, rumo ao infinito, como as letras do Star Wars.
A maior habilidade de Moore está na forma como consegue editar, alinhar, montar, aparelhar os materiais do costume – depoimentos, casos de vida e de morte, conversas com transeuntes, supostas tiradas ocasionais, pequenas rábulas, filmes de época, imagens de propaganda americana, cenas televisivas, as habituais e já imprescindíveis punch lines de Busch. Moore não usa só manobras retóricas, nem os casos trágicos, nem as estatísticas que situam os EUA no 37º lugar, a seguir à Eslovénia, no World Health Organization’s ranking, e dizem que um bebé em El Salvador tem mais hipóteses de sobrevivência do que um bebé americano. A isto se junta a força manipuladora do humor (umas vezes mais sarcástico que outras) e da banda sonora – utiliza dezenas de músicas que anexa a cada ocasião. Nisto Moore é quase genial. Muito poucos conseguiriam fazer de um documentário sobre um tema circunspecto, como é o do sistema de saúde americano, quase um filme de acção – e muitíssimo divertido. Da tragédia pessoal à comédia negra.
O que pode haver de mais irónico do que ver os heróis do 11 de Setembro, rejeitados pelo sistema das seguradoras americano, a serem tratados gratuitamente pelos cubanos? E isto pode chamar-se provocação, mas não deixa de ter uma simbologia poderosa. Muitos dos voluntários que se ofereceram para ir salvar pessoas no meio dos escombros do World Trade Center, desenvolveram graves problemas respiratórios. Michael Moore logo agarrou a extraordinária oportunidade mediática. Embarcou estes heróis enjeitados numa pequena frota e faz-se ao mar em direcção a Cuba, onde os problemas sociais e de liberdade são os sabidos, mas o serviço de saúde (universal e gratuito) está ao nível dos países desenvolvidos – aliás, para além de charutos, turismo e música, Cuba é um exportador de saúde. Agora, Moore enfrenta um processo judicial por ter quebrado o embargo – nenhum cidadão americano pode viajar até Cuba sem autorização oficial.
Aliás, a rábula cubana de Moore não se ficou por aqui. Ele é um autêntico ecoponto de reciclagem de lixo ideológico. Pegou nos discursos do exército americano que se esforçam por dourar a base-prisão de Guantânamo e respondeu-lhes com a mesma arma: a demagogia, pois é. Segundo o discurso oficial, os prisioneiros de Guantânamo, entre os quais membros da Al Qaeda directamente implicados no 11 de Setembro, são tratados com muita ternura e dedicação. Dizem que têm ao dispor da sua saúde tecnologia de vanguarda, que são assistidos por pessoal médico a tempo inteiro, que têm consultas três vezes por semana, dentistas e até lhes fazem análises regulares ao colesterol e ao cólon. Moore faz uma descoberta: afinal há um sítio em solo americano onde o acesso à saúde é gratuito, e de boa qualidade – e o foco «cai» sobre uma imagem aérea da base cubana. A bordo, junto às águas minadas da base, Moore grita por um megafone: «Há aqui pessoas que precisam de tratamento». E estes são os «good guys», não são os «mauzões».

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