quinta-feira, 4 de outubro de 2007

E agora algo completamente indiferente

A Vida Interior de Martin Frost, de Paul Auster


Em A Vida Interior de Martin Frost, de Paul Auster tudo é demasiado neutral e plano, com os mares sem ondas que entendiam os surfistas


O dramatismo não comove, o humor não faz rir – e quando isto acontece um filme está perdido. O Mundo Interior de Martim Frost, do realizador e escritor Paul Auster, não é um filme totalmente perdido. Não deslumbra mas também não aborrece. Não escandaliza mas também não seduz. Deixa-nos assim num estado de indiferença. Como aqueles quartos de hotel, beges, impessoais e pacificadores.

O filme, a segunda experiência de realização a solo do escritor, depois de Lulu on The Bridge (1998), começa com um travelling pelo interior de uma casa. A câmara passa por quadros, móveis, fotografias onde se podem ver de relance o próprio Auster e a mulher, a também escritora, Siri Hudstevt. São os donos da casa, que nunca aparecem mas são várias vezes e insistentemente nomeados: Jack e Diane Restau. Trata-se do primeiro sinal do síndrome matrioska deste filme – Restau é um anagrama de Auster, revelou o próprio numa entrevista. O segundo sinal reside no factor da voz off pertencer ao próprio escritor, apesar de tal não constar dos créditos finais. E aqui temos um escritor que conta uma história sobre um escritor que conta uma história...

O Mundo Interior de Martim Frost foi todo ele rodado em Portugal – mais por conveniências orçamentais do que por qualquer outra razão. Através de Wim Wenders, Auster conheceu Paulo Branco que lhe proporcionou uma equipa quase familiar para um filme de baixíssimo orçamento. A moradia onde se desenrola a história fica nas Azenhas do Mar, perto de Sintra, mas não é uma casa portuguesa, com certeza. Aliás, Auster evitou tudo o que podia ser ex-líbris ou típico. Aqueles exteriores são apátridas, são um não lugar. Tanto podiam ser rodados cá como noutro qualquer sítio do planeta – não tanto assim, sejamos justos: há umas aparições de uns sobreiros e de uns pinheiros mansos muito reconhecíveis. Mas só para português reconhecer.

Tudo se passa entre quatro actores, um inglês, uma francesa, um americano e uma americana.

O inglês é o fantástico David Thewlis que já desempenhou papéis notáveis em filmes de Mike Leigh. Aqui deixa-nos mais ou menos... indiferentes. Faz de Martin Frost, um escritor anti-social que se refugia, como um eremita, numa casa de campo de amigos, para descansar depois de ter escrito o seu quarto romance.

A francesa é Irène Jacob, uma misteriosa mulher que uma manhã lhe aparece na cama, sem mais nem menos, e que usa soutiens de renda e é muito mais filosófica nas leituras do que nos actos. Passa o tempo a ler o Tratado do Conhecimento Humano, de George Berkeley, o Tratado da Natureza Humana, de Hume, a Crítica da Razão Pura, de Kant. É uma musa inspiradora. É bom que as musas sejam eruditas e percebam de filosofia. Mas esta, mesmo para musa, parece-nos um bocado pretensiosa, e bastante irritante. E até com uma contribuição, arrisca-se, relevante no estado de indiferença geral gerado pelo filme – é só uma opinião, porque na verdade esta actriz arrasta uma corte de (incompreensíveis!) admiradores.

O americano é Michael Imperioli (de Os Sopranos), um canalizador, candidato a mau escritor, que joga ao tiro ao alvo com chaves de fendas vestido à cowboy (!?!), despreza o Bush mas não é democrata (é trotskista) e tem as tiradas mais desinspiradas do filme como «Uma vez li num sítio que a chuva na Índia cai com tanta força que as gotas parecem balas. Se não se tiver cuidado pode-se morrer quando se vai à rua»...

A americana é Sophia Auster, filha do realizador. Faz de musa incompetente, que aparece tipo zombie e depois começa a cantar.

No meio de toda a implausibilidade (mais que assumida) da história há cenas que talvez até consigam escapar ao desinteresse que assola o filme. E até surpreendem. Aquela em que, uma por uma, as 37 páginas da obra do escritor Martim vão sendo consumidas, à medida em que uma vida vai sendo concedida – embora o expediente do lume da lareira a extinguir-se ao mesmo ritmo em que alguém solta o último suspiro seja demasiado óbvio. E também a cena em que dois mundos, estanques mas não incomunicáveis, interagem através de uma porta fechada.

Auster, que se diz um «escritor que às vezes faz filmes», empenhou-se na construção desta obra nas tarefas mais irrisórias. Do guião à pré-produção. Escolheu todas as toalhas, copos, móveis e quadros que decoram a casa. Andou a desatarraxar os puxadores de porcelana das portas e gavetas da cozinha porque achava que pareciam bolas de pingue-pongue. No entanto, nota-se demasiado que o filme era uma curta-metragem, alongada à posteriori, e enxertada com personagens irrelevantes.
É uma história de amor (quase todos os filmes o são, em última instância) – mas é-nos indiferente se o par acaba junto ou não. É uma história de um escritor em processo de criação – mas é-nos indiferente se ele consegue escrever ou não. Há uma personagem em risco de vida – mas é-nos indiferente se ela sobrevive ou não... Tudo é demasiado neutral e plano, como aqueles mares sem ondas que entediam os surfistas. Ou como o quarto de hotel de que falávamos no início. Cómodo, neutral, acolhe-nos durante um tempo e não fica registo na memória. Só no Check-Out.

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