sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O Estado do sítio

Gomorra, de Matteo Garrone

Favores em cadeia da Camorra de Nápoles num neo-neo-realismo italiano





A mafia italiana como nunca foi vista antes. Sem manto diáfano da fantasia, sem o glamour de Hollywood, sem romantismos de argumento, sem grandes conceptualizações cinematográficas, sem estereótipos americanizados (ou coppolizados), sem ambiguidades, sem adornos nem concessões, sem sensacionalismos, sem vozes colocadas de actores profissionais... A nudez forte da realidade. Crua – e muito dura. Nápoles, cidade sem justos, século XXI. Roberto Saviano, autor do livro que deu origem ao filme Gomorra, do italiano Matteo Garrone (vencedor do Grande Pémio do Júri, no Festival de Cannes 2008), tornou-se num novo Salman Rushdie. Andou entre os tentáculos deste polvo durante anos para escrever um relato não-ficcional, agora teme ser colhido por eles e vive, diz-se, sob escolta policial. Este é um filme de denúncia militante, quase num estilo documental, acentuado pelas advertências finais: a Camorra produz mais mortos do que qualquer organização terrorista, ao ritmo de um assassínio por cada três dias.

A desolação de bairros assolados, desertados pelas autoridades oficiais. O estado a que o sítio chegou. O estado de sítio mora aqui. Sempre morou aqui, neste caos organizado pelo sistema quase tribal de protecção e favores em cadeia. E de crime, corrupção e violência. Com uma sobriedade rara, contenção de gestos e economia emotiva, até no impressionante despojamento com que filma a iminência da morte, Matteo guia-nos através de cinco plots que não se entrelaçam mas, ainda assim, nos montam o cerco. As personagens são apanhadas nas suas vidas subterrâneas em curso, como se a câmara estivesse acidentalmente a transitar por ali. Há um miúdo que vai passar por um ritual de iniciação e perceber o significado da lógica «se não estás connosco estás contra nós». Há um jovem licenciado que começa a trabalhar com um mafioso no ramo do escoamento do lixo tóxico industrial. Há um alfaiate que ousa subtrair-se aos tentáculos e começa a dar aulas clandestinas e nocturnas à concorrência chinesa. Há um «correio» de meia-idade que vai de casa em casa distribuir dinheiro às famílias dos mafiosos presos. Há a deambulação inconsequente de dois «galarós» que se intrometem em monopólio alheio e acreditam na livre iniciativa privada. E ainda há todo um cenário minado (gomorrizado?), perfurado por gerações de térmitas instaladas, que continuam na sua faina corrosiva de séculos, com as suas coerências, hierarquias e (i)legalidades internas. Também há cenas inesquecíveis: como aquelas em que, numa plano aberto, os mafiosos do lixo tóxico emergem literalmente do chão, como toupeiras que são, ao canto direito do ecrã, numa gasolineira abandonada. Ou aquela em que, numa pedreira, um bando de miúdos se instalam ao volante de camiões cheios de material corrosivo. Ou ainda a cena que dá cartaz ao filme, quando esta dupla de gabarolas retardados, candidatos a mafiosos, brinca, de cuecas, a atirar balas e projécteis na maré baixa, como quem atira pedras que fazem ricochete na água.

Mais perturbador ainda: não estamos numa favela do Rio, mas na Europa do G8. O submundo italiano, em ponto de não retorno.

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