quarta-feira, 25 de março de 2009

Um Conto de Reis

O Canto dos Pássaros, de Albert Serra


















Apenas o Evangelho segundo São Mateus fala dos Reis Magos, referindo-se a eles como «uns magos que vieram do Oriente a Jerusalém». Não há qualquer menção dos seus nomes, nem que um deles era de raça negra, nem sequer explicita que eram três. Tal pode ser deduzido pelo número de ofertas: ouro, incenso e mirra. Foram enviados pelo Rei Herodes (personagem histórica), alegadamente, para o adorar. Mas o que ele realmente pretendia era matar Jesus, pois temia que, cumprindo as profecias, este se tornasse o rei dos Judeus, tomando de assalto o seu trono. Os magos foram avisados em sonhos e alertaram José e Maria para o perigo que corriam.
Este conto de reis serve para contextualizar outro: depois de se ocupar dos tempos mortos de Dom Quixote e Sancho Pança, em Honra e Cavalaria, o catalão Albert Serra regressa com um trio de personagens de ficção, ou, pelo menos, amplamente ficcionadas ao longo da história, na tradição cristã. E, apesar de, ao contrário de Honra e Cavalaria, O Canto dos Pássaros ser rodado a preto-e-branco, a essência mantém-se. Trata-se de um filme com um ritmo lentíssimo, com personagens à deriva, não só no argumento, mas no próprio ecrã. Um estilo muito próprio de filmar os nadas, ou o que acontece quando nada acontece.
Na apresentação, em Lisboa, o Serra, talvez com alguma ironia, apelidou-se o melhor realizador espanhol desde o Buñuel, e queixou-se de uma incompreensão geral do público. Claro que os seus filmes estão reservados a uma elite. Uma elite esteticamente sofisticada, capaz de apreciar a beleza de uma boa fotografia, conhecedora da história do cinema e da sua cumplicidade com as outras artes, e sem sono. Os planos fixos, a montagem minimal, a reduzida acção, repudiam os espectadores menos informados. A obra (sem dúvida que é uma obra na mais nobre acepção da palavra) tem uma inequívoca riqueza estética, cheia de bons pormenores e o burlesco das personagens é bem explorado, mas apenas na parte final do filme.
Ironicamente, Albert Serra, que é um catalão feroz e independentista, ao ponto de se queixar por ter de falar castelhano no estrangeiro, nos seus dois filmes exportados foi pegar nos maiores ícones de Espanha e de Castela: em primeiro lugar Dom Quixote e depois os Reis Magos (nenhum dos países vizinhos, França, Portugal, Itália ou Inglaterra lhes dá tanta importância, como a Espanha, da Galiza à Catalunha).
Tal como em Honra e Cavalaria, tentou contar o que não está escrito, no ambiente onírico sugerido pela passagem da bíblia. E se o que está escrito é sempre menos do que está por escrever, aqui a diferença é abissal, por que a passagem do Evangelho resume-se a um parágrafo. Cria-se todo o espaço para que estas personagens tão confundíveis com as de contos de fadas, se desenvolvam e se recriem enquanto personagens. Tal é bem conseguido no diálogo perto de um final, uma conversa própria do surrealismo, num universo de sonhos e adivinhações, em que um dos reis afirma, vindo de nada: «Um dia vi um homem que voava». E mais à frente, outro diz: «Há muitos anjos e são todos bons». Enfim, depois de visitar o menino, os reis vão à sua vida… e nós vamos à nossa.

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