quinta-feira, 27 de março de 2008

Dylan, mutatis mutante

Não Estou Aí, de Todd Haynes

O melhor de Não Estou Aí é a ideia: dissecar Dylan através de seis actores diferentes. O pior: a sua concretização

O arranque é poderoso: um Dylan invisível, em plano subjectivo, a caminhar no corredor da morte. E com a seguinte se revoga de imediato a frase anterior: não há nenhum corredor da morte no filme de Todd Haynes, Não Estou Aí (estreia esta quinta, dia 27). Já está escrita a frase, portanto deixemo-la ficar. No início existe - desta vez, é mesmo verdade – um bastidor a preto e branco, curvas e contra-curvas, funcionários escoltadores, uma escada que se sobe, ao mesmo tempo que sobem os brados do «público devorador». Dylan, ou a sua incorpórea presença, entra na luz de muitos volts de um palco. Mas se não é morte este clarão, porque jaz, nas cenas seguintes, um Dylan andrógino (Cate Blanchett) num caixão? Afinal, já nem temos a certeza de que não haja corredores da morte no filme de Haynes. Há, e são pelos menos seis. É de mortes (mesmo assim no plural) que se trata quando se fala de vida (s) do, mais icónico que real, Bob Dylan.

«Ser Bob Dylan era uma pressão enorme para um só homem», disse Todd Haynes. Fazer um biopic de Dylan também deve ter sido uma pressão demasiado grande para um realizador. Daí esta opção (genial, em primeira análise) de filmar um Dylan polifórmico, repartido por seis actores diferentes, em seis bocados de cinema também estruturalmente diferentes, do preto e branco à cor, do western aos ambientes mais godardianos... Todos seis são uma espécie de avatars do Second Life, que dissecam as várias fases por que passou o homem-cobra, aquele largava as suas muitas peles, espalhadas, nas curvas do caminho. Dylan era (ainda é?) único e inúmero. Haynes tentou captar a essência, para além das máscaras. Tentou encontrar-lhe a voz, para além dos heterónimos. Tentou... se conseguiu é outra conversa.

Certo é que o homem resolvia as suas crises de identidade, matando a anterior e ingressando na próxima. Robert Allen Zimmerman, 66 anos, era (ainda é?), convenhamos, tudo, menos coerente.

Quem está aí?
Um miúdo negro e precoce (Marcus Carl Franklin) que viaja clandestinamente de comboio, tem uma viola num estojo onde está escrito «Kills Fascists» e diz chamar-se Woody Guthrie, o cantor folk que Dylan adorava – «Tens alguma arma no estojo», perguntam-lhe. «Bem, não literalmente...» Este é o Dylan mitómano, menino pinóquio e, no filme, até a baleia é convocada... Um cantor de protesto (Christian Bale) que se torna quase cantor-pregador. Um poeta-cantor (Ben Whishaw) que dá respostas provocadoras durante um interrogatório de polícia – ou será uma conferência de imprensa? Uma estrela excêntrica (Heath Ledger) com problemas conjugais. Um fora da lei grisalho (Richard Gere) numa paisagem westerniana. E, enfim, aquele que é fisicamente mais parecido com Dylan (Kate Blanchet), que comete a «traição» de morrer para o acústico e para as letras politicamente engajadas, e renascer com uma nova pele electrónica. Curiosamente Haynes chamou Jude a este último Dylan, o único a preto e branco, numa alusão possível aos insultos dos espectadores puristas durante um concerto: «Judas!»

A presença de Kate, que, após o início, só torna a aparecer lá mais para o meio, enche por completo o filme. Não só porque encarna o Dylan mais reconhecível – também porque a actriz tem, de facto, uma aura qualquer. Depois de ter integrado os tiques de uma Katherine Hepburn em O Aviador, de Martin Scorsese, Blanchett revisita o arrevesado ano de 1964 deste compositor camaleónico. Ela, que é um ele, e a sua corte deambulam pelos enredos míticos e místicos do star system, os hotéis, os concertos, as conferências, os encontros com os mais fanáticos que fãs: «Estás-te a prostituir, já não és o que era dantes». Já não quer ser a «voz de uma geração», desafivela aquela máscara, está-se nas tintas para o que as suas letras dizem ao povo...

Dylan é um continente. Cheio nações sem estado, de miragens, de areias movediças, de terrenos pantanosas. Haynes resolveu baralhar e voltar a dar. Misturou dados biográficos com as memórias fantasiosas de Dylan, com o universo das suas letras, com as suas próprias e íntimas projecções sobre um dos mais marcantes compositores americanos... Por isso, neste filme não se trata de encaixar as peças dos vários bocados dos filmes uns nos outros, como um puzzle, em busca de alguma coerência narrativa.Trata-se antes de jogar ao «descubram o Dylan», neste patchwork cinematográfico, que, por vezes, se torna cansativo ou pretensioso, nesse enleio de referências, quase sempre pouco óbvias, mas sobretudo difusas. E lá se dobam alguns novelos que nunca chegam a engrossar. Seria mais fácil se cada um dos espectadores, tivesse antes uma lição de Dylan e assistisse primeiro ao documentário No Directon Home (2005), de Scorsese. Claro que Haynes terá fugido da descodificação, da lógica mainstream ou do mimetismo beato, como diabo da cruz... Mas, no final, pouco mais resta do que um bom conceito (o das diversas encarnações de Dylan) que não deu um bom concerto – no sentido menos musical do termo. As intenções não são reverenciadoras, mas a figura, de tão inantigível, ambígua e incorpórea sai sacralizada. Não Estou Aí tem, pelo menos, o grande mérito de não iluminar a face oculta que convém aos ídolos. E de nem ousar responder à questão essencial de toda esta história: Os sixties não teriam existido sem Dylan, ou seria Dylan que não teria existido sem os sixties?

Sem comentários: