quinta-feira, 20 de março de 2008

Despedaços

Os Fragmentos de Tracey, de Bruce McDonald



Se algum dia pudéssemos fazer o exercício de olhar para dentro da cabeça de alguém, devia ser mais ou menos assim: retalhos, apenas retalhos. E fatias de vidas, pedaços de imagem, fragmentos de acção, restos de passado que se misturam com porções de presente que se fundem com antecipações do futuro; realidade, confusão e sonho; caixas que se abrem sobre outras caixas como nos computadores... A melhor maneira que o realizador Bruce MacDonald, referência do cinema independente canadiano, encontrou para mostrar a desintegração interior de uma personagem adolescente foi... desintegrar o próprio ecrã.

É uma espécie de filme cubista este Os Fragmentos de Tracey, em que cada plano se multiplica e disseca, cada cena é uma composição múltipla e cada imagem se contém a si própria (e ainda aquilo que já foi e virá a ser). Desde o início que o filme corre nesta polifonia visual e espasmódica, um coro de imagens que estilhaçam geometricamente o ecrã. Que se abrem como janelas informáticas, consultam-se como posts, curtos e rápidos, sequenciam-se como links de hipertexto. A técnica do ecrã fragmentado, cuja a vulgarização televisiva atirou para o canto dos expedientes cinematográficos facilitistas, é refrescada neste filme genialmente experimental que demonstra ser muito mais do que um mero exercício de reciclagem estilística. E que consegue dar simultaneamente a claustrofobia do mundo exterior (preso dentro de quatro cantos) e o caleidoscópio do mundo interior (que se desdobra em fragmentos).

Os Fragmentos de Tracey é um assalto aos sentidos (com a também salteadora banda sonora dos Broken Social Scene,). Mãos ao alto, a bolsa ou a vida, e logo nos rendemos a esta convulsa narrativa, e aos seus mondrianicos encaixes, de ângulos múltiplos, repetições, raccords dissonantes, flash-backs e flash-forwards, ao mesmo tempo. Que ora nos fazem lembrar uma espécie de zapping simultâneo, ora uma leitura digital, ora a estética de BD, que aliás também para aqui é convocada.... E enquanto decorre a acção, podemos ver não só a acção da personagem, como aquilo que ela vê, os fragmentos que os seus olhos tocam, como a visão poliédrica das moscas. É a personagem de Tracey que nos ajuda a mantermo-nos focados. Ela é «just a 15 years old normal girl who hates herself», impressionantemente interpretada pela actriz do momento, Ellen Page, uma espécie de nova diva do cinema independente. Se em Juno, se prenunciava o talento da actriz investida numa personagem tornada caricatura pela sua hiper-definição, em Os Fragmentos de Tracey ele é definitivamente confirmado, incomparavelmente mais profundo e violento.
Tracey é uma adolescente desajustada, oprimida pelas hormonas do crescimento, pela disfuncionalidade da família, pelo bulliyng das colegas de liceu que a tratam por «it». Tem um irmão mais novo que pensa que é um cão e uma paixão por um rapaz mórbido e ignóbil. O romance da escritora e performer Maureen Medved fez lembrar a Bruce um moderno Agulha no Palheiro, de Salinger. É uma trági-comédia, com uma dose de mordacidade e humor negro. Sobre adolescentes, mas não necessariamente para adolescentes, como o recente Paranoid Park, de Gus Vont Saint. Aliás, não são só estas as semelhanças entre os dois filmes. Em ambos se viaja na cabeça de teenagers reais e atormentados. Em ambos, existe culpa e a redenção... possível.

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