terça-feira, 7 de abril de 2009

Calmamente, de cabeça perdida

A Mulher sem Cabeça, de Lucrecia Martel









Não tem qualquer ligação com Tragam-me a cabeça de Alfredo García (Sam Peckinpah), nem com A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro (livro de Antonio Tabbucchi). E se o filme falasse da amnésia pós-traumática correria o sério risco de não merecer mais do que os dois olhos de demasiado visto (ver legenda). Mas Lucrécia Martel é irresistivelmente mais subtil, e nada nas suas mãos se afigura banal, embora tudo seja enriquecedoramente quotidiano. Verónica tem um acidente de automóvel em dia de temporal. Julga ter atropelado algo ou alguém. Quando bate com a testa na frente do carro, não é a cabeça que lhe salta, mas sim a alma.
A Mulher sem Cabeça conta a história de uma mulher de alma ferida, que se deixa arrastar trôpega e flácida, pelas suas rotinas. Porque quando se mata, decapita-se a alma. A câmara de Lucrécia Martel e a actriz María Onetto sabem transmitir de forma sedutora essa sensação de estranheza, como se todo um mundo familiar se revelasse estrangeiro, mas não irreconhecível. O marido, o irmão, os filhos, o emprego, as ruas… tornam-se evanescentes, elementos perturbadores, mas decisivos para o reencontro consigo própria. E o reencontro dá-se pela assumpção do pecado. Mas que pecado? Aparentemente não há culpas a assumir, porque não há crime, nem cadáver. A polícia não encontra o corpo e na estrada aparece um cão morto que corrobora a inocência. E, aparentemente, a mulher sem cabeça é apenas uma mulher de cabeça perdida. Ou não será?
Fica a dúvida. Assim como nunca se sabe ao certo a partir de que momento ficou tranquilamente de decapitada. E se um acidente não evidenciou uma desorientação estruturante de uma personagem que não encontra no seu mundo um lugar para repousar a cabeça…
Tal como nos filmes anteriores, A Menina Santa (2004) e O Pântano (2001), Lucrécia Martel, porventura a maior realizadora latino-americana da actualidade, mostra uma Argentina real, que vai muito além de tangos e parrilladas. Numa história, ao mesmo tempo, tão localizada e universal.

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