quarta-feira, 17 de junho de 2009

Jogo de Enganos

Dois Dias para Esquecer, de Jean Becker






Há filmes que se constroem como um jogo de enganos. Semeiam-se indícios que encaminham o espectador para um sítio e, depois, quando ele já está bem convencido que o caminho é aquele, revela-se que passou o tempo todo enganado e que, para seu espanto, está no campo oposto. Tal faz-se de forma assumidamente lúdica nos policias e filmes de suspense. É claro, em Vertigo – A Mulher que Viveu duas Vezes, de Alfred Hitchcock, ou, para dar um exemplo mais recente, em Os Suspeitos do Costume, de Bryan Singer. A armadilha é tão bem montada que o filme merece ser visto pela segunda vez, só para descobrir as artimanhas e alçapões, e verificar a verosimilhança do argumento. Apesar de, naturalmente, a um segundo visionamento, se perder a surpresa do desenlace, que tempera o filme. Nos exemplos referidos, tudo se encaixa como uma luva, sem falhas, nem distorções. E o espectador sai vulgarmente da sala vencido, aplaudindo a inteligência do cineasta
Mas esse esquema não é exclusivo do género policial. Pode ser igualmente estimulante quando se aplica a outro tipo de filmes. Até porque, obedecendo regras diferentes, a existência de um twist semelhante não é tão esperada e óbvia. É o caso de Dois Dias Para Esquecer, de Jean Becker, que não é um filme policial, pelo contrário, é um drama, ainda por cima francês, mas que se dá ao luxo de brincar com o público.
A armadilha inicial é prazenteira e até entusiasmante. Como em Um dia de Raiva, de Joel Schumacher, há um homem que se passa. Só que, ao contrário da personagem de Michael Douglas, não desata a matar pessoas, a troco de um simples engarrafamento. Antoine (Albert Dupontel), com humor e acidez excessiva, dispara palavras amargas em todas as direcções. A sua ironia, bastante divertida, no trabalho (enquanto publicitário), quase arruína um negócio importante. A mulher descobre-lhe uma amante e ele, em vez de mostrar arrependimento, contra-ataca de forma brutal e chocante. É hostil e agressivo para os amigos e até para os filhos. Apenas se salva a vizinha e o cão. Apalpa as mamas de uma amiga, dá um murro a outro e aqueloutro chama-lhe de bucha. Parece ter perdido totalmente o filtro social, aquele que nos protege das verdades impiedosas.
Antoine procura uma vida nova, quer viajar, descobrir o mundo. Decide partir e parte. Julgamo-nos diante de uma acentuadíssima crise masculina dos 40. E imaginamo-lo de fato-de-banho numa ilha das Caraíbas, com duas autóctones em topless a abanarem ramos de palmeiras, enquanto lhe servem daiquiris. Mas, para nossa surpresa, vai ao encontro do pai, sumido numa vila da Irlanda. Pai este que o abandonou, tal como ele, planeia agora abandonar a família. Porque quem sai aos seus não degenera, e nem só as qualidades se imitam. Desenvolve-se um jogo de espelhos, curioso e dúbio, que logo se desfaz em cacos, porque, afinal, não era nada disto. Éramos nós que estávamos a receber os reflexos destorcidos.
Dois dias para Esquecer está cheio de bons ingredientes, como a interpretação de Albert Dupontel e os excelentes diálogos de François d'Épenoux (autor do livro), entre outros, que o aproximam, por vezes, de uma peça de teatro. Contudo, algumas falhas na costura quase o comprometem. A reviravolta não é bem sustentada, e ludibria em excesso, o que o pode tornar irritante: porque para essa surpresa final resultar, tudo a montante tem que fazer perfeitamente sentido, caso contrário o espectador sente-se insultado. E isso é pecado.

3 comentários:

JMDuarte disse...

Percebo o que quer dizer. muito boa a análise.
JMDuarte

Lúcia Simões disse...

Também acho boa, mas afinal qual a classificação?
Lucia Simões

Lúscia Simões disse...

Olha, são três...